Na última sexta-feira foi ao ar o último capítulo da novela das 21h, a Dona do Pedaço, exibida pela Rede Globo. O desfecho da trama escrita pelo autor Walcyr Carrasco, teve um tom de crítica forte a onda de conservadorismo que tomou conta do Brasil nestes últimos anos, não agradando a muitas pessoas religiosas, principalmente as evangélicas e católicas. Walcyr, que em suas tramas já vinha tocando em algumas feridas da sociedade, nesta última tocou em uma que está bastante aberta que alastra-se de forma avassaladora, criando e ditando regras.
Os telespectadores expuseram toda indignação nas redes sociais, não só por verem uma mulher transexual casando-se com um homem heterossexual, e a cena de beijo dos dois, mas, também, com a união homossexual das personagens Agno (Malvino Salvador) e Leandro (Guilherme Leicam). Mesmo não sendo algo feito pela primeira vez, ainda causa incômodo em muita gente, que vê como uma aberração dois homens ou duas mulheres se beijando, vivendo uma vida comum de pessoas casadas. E alguns mais conservadores baseiam-se nos versículos da bíblia para opinarem e também expor todo ódio e preconceito que sentem.
Mas, o estopim para a enxurrada de críticas foi o final dado pelo autor as personagens religiosas Joseane (Agatha Moreira) e Fabiana (Natália Dill).
Uma, criada em um convento, se dizia temente a Deus, com um coração puro e de ser uma pessoa muito boa. A mesma era uma mulher ambiciosa, que não media consequências para obter tudo aquilo que desejava e, no final da trama, uniu-se a um matador de aluguel, passando a praticar assassinatos por encomenda junto com seu companheiro. E uma das cenas que chocou demais os telespectadores foi a de Fabiana após ajudar matar um homem, rezar com um terço nas mãos, pedindo perdão a Deus pelo crime cometido.
A outra cena foi a da personagem Joseane assassinando Régis (Reynaldo Gianecchini), após ela ter se convertido a religião evangélica na prisão. Joseane logo após ter cometido mais um crime, agiu normalmente, como se nada tivesse acontecido, pois agora ela era uma mulher de fé, temente a Deus, passou agir conforme tudo que diz a bíblia.
Agora, vamos sair da ficção, do mundo de faz de contas para o mundo real. Vamos analisar a nossa sociedade com base nas críticas do autor Walcyr Carrasco, após essa onda conservadora, com um número cada vez mais crescente de pessoas se convertendo às religiões evangélicas e católica, mas mantendo alguns de seus hábitos “mundanos”. Será que Walcyr foi mesmo muito radical ao tocar numa ferida tão grande e bastante inflamada? A história mesmo nos revela episódios de guerras santas e sangrentas que ocorriam nos séculos passados e ainda ocorre nos dias de hoje.
A Igreja Católica, a maior instituição religiosa desde a sua fundação no século I, carrega em sua trajetória inúmeras passagens de disputa por poder entre seus membros, a imposição a população de seus conceitos, mortes, mulheres que eram queimadas vivas em praça pública por professarem a sua fé, pois elas eram consideradas bruxas. Antes do início é do final, do que era tratado como espetáculo, bispos, padres, sacerdotes e outros membros da instituição, rezavam pela salvação das almas das mulheres. E um dos maiores pecados e crimes cometido pela Igreja, a liberação da invasão a África para exploração de minérios, pedras preciosas e a captura de seres humanos negros para serem escravizados. Pois, a escravidão foi abençoada pela Igreja Católica, que demonizou os cultos africanos, que por conta disso são perseguidos até hoje. E todas essas ações eram cometidas com base na bíblia e em nome de Deus. O dito livro sagrado era quem ditava a forma de vida das pessoas, e aquele que não o seguia era considerado um pecador e era cobrado severamente por isso. A Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana estava acima até mesmo dos governos, a bíblia era uma verdadeira constituição.
Então, revisitando rapidamente a história e fazendo uma comparação com a trama de Walcyr Carrasco, as críticas feitas a ele será que foram justas? Antes de esbravejar com o autor nas redes sociais, não deveríamos fazer um exame de consciência? Não deveríamos olhar ao nosso redor, observar a sociedade que construímos no dia-a-dia? A cena da ex-freira, temente a Deus, rezando após cometer um assassinato não foi inventada, ela aconteceu muito no passado e infelizmente, ainda acontece. Parafraseando Nicolau Maquiavel, “o homem não é totalmente bom, mas também, não é totalmente mau”. Portanto, a religião, a crença não é sinônimo de caráter. O indivíduo é o que é e pronto, seja lá qual a fé que ele professe.
Mas, com o passar dos anos e dos séculos, após a Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero, a Igreja Católica foi deixando de reinar sozinha, passando a dividir o cristianismo com protestantes, luteranos, batistas, testemunhas de Jeová e os evangélicos, sendo que, estes últimos estão conquistando cada vez mais adeptos, pois suas igrejas estão presentes em vários lugares bastante estratégicos. E estes lugares estratégicos são periferias, subúrbios e favelas, onde há muita pobreza, miséria e uma enorme quantidade de pessoas com baixa escolaridade, pouca, ou nenhuma informação, com suas vidas pessoais, financeira e familiar desestruturadas, e sendo assim, elas são de fácil dominação por não saberem questionar e por aceitarem tranquilamente o que lhes é imposto pela religião.
E, após conseguir entrar neste terreno fértil para impor seus conceitos, os evangélicos conseguiram conquistar um outro bem mais fértil ainda para atrair mais fiéis e seguidores: a cadeia. Os mesmos estão presentes em todos os presídios do Brasil, e só aqui no Estado do Rio de Janeiro, são mais de 20 denominações evangélicas lá dentro, e dizem contribuir com a ressocialização de presos. Muitos detentos se convertem e, em seguida, acabam convertendo seus familiares, levando-os também para as igrejas dentro e fora das penitenciárias. Talvez aqui neste trecho, comecemos a entender um pouco sobre os chamados “bandidos de Jesus” que estão dominando algumas favelas cariocas, querendo impor suas crenças e fé, destruindo terreiros de Candomblé e Umbanda, e expulsando dos locais os adeptos destas religiões.
Mas, voltando a dominação das igrejas evangélicas dentro dos presídios, a mesma afirma contribuir dando assistência religiosa aos detentos e seus familiares, assim ajudando o “sistema” no trabalho de ressocialização, diminuindo o retorno dos presos que conquistaram a liberdade a prisão. E aí fica a pergunta que não quer calar. Se estão presentes em todos os presídios, convertendo centenas de presidiários, por que uma população carcerária tão grande, se a maioria é de reincidentes? Certa vez, conversando com um agente penitenciário, ele me disse que “a cada 10 presos convertido, 10 voltam para o sistema, e se não for essa quantidade, no mínimo 8 ou 9 retornam”. Um número bastante considerável.
As cenas da conversão da personagem à religião evangélica, e dela voltando a cometer crimes após ter se convertido, mostrou ao público que caráter e crença são coisas independentes. Joseane era uma pessoa mau caráter, e passou a usar religião como escudo, pois passou a agir em nome de Deus, de acordo com mandamentos bíblicos. Como se costuma dizer, ela se escondeu atrás da bíblia, assim já fazia a personagem Fabiana.
Mas, na vida real vemos casos de pessoas religiosas cometendo crimes, como o caso do pastor condenado por estupro, um casal de pastores condenados por evasão de divisas nos EUA, padres envolvidos em casos de pedofilia. Líderes religiosos famosos envolvidos em escândalos de corrupção, falcatruas, charlatanismo, desvio de dinheiro, entre outros crimes. E na base desta pirâmide, vemos grupos de traficantes determinando a vida religiosa das pessoas nas favelas dominadas por eles, pais discriminando seus filhos devido suas orientações sexuais, muita intolerância com outras religiões, principalmente com as de matriz africana. Desrespeito com a fé, com o modo de vida do outro em geral.
Voltando para a parte de cima da pirâmide, o povo brasileiro elegeu nas últimas eleições governantes conservadores, mas que disseminam ódio, que querem armar a população a todo custo, que apoiam a tortura, que desrespeitam a Constituição em nome da fé. Governantes que que se elegeram com o slogan “Deus a cima de tudo”.
Agora, refletindo sobre o final da novela, após observarmos a sociedade brasileira, o autor Walcyr Carrasco não radicalizou, pois ele levantou temas que a maioria das pessoas quer deixar escondida dentro dos armários e debaixo dos tapetes. Walcyr, como disse lá no início, tocou em feridas que estão inflamadas, mas talvez por pura conveniência, muitas pessoas na sociedade não querem que elas sejam curadas. As mesmas querem continuar agindo de forma desrespeitosa e intolerante por trás da bíblia, em nome de Deus.