Um amigo me perguntou como estavam as coisa na "minha" área. Respondi prontamente: tranqüilo igual Bagdá. Poderia ser engraçado a certo ponto se não fosse trágico. É assim que tenho me sentindo todas as noites, em Bagdá. Sem nunca ter pisado fora do Brasil, sinto estar vivenciando realidades como a da Bósnia, Palestina, Afeganistão, Angola, e por ai vai. Exagero? Acho que não. A Vila do João, onde moro, é o portão de entrada para o Complexo da Maré. A Maré é hoje o principal complexo de favelas do Rio de Janeiro. Têm uma população com cerca 140.000 pessoas.
Segundo informações do meu amigo Alberto, do Observatório de Favelas, se fosse um município seria o 80º em população no Brasil. Infelizmente, somos 140.000 de renegados, sonegadores, refugiados da justiça, segregados, criminosos, excluídos (o que mesmo assim não justificaria tal abandono social). Não somos? Estaria eu ficando louco? Se não nos encaixamos em nenhuma das categorias acima porque será que não me sinto um cidadão de fato? Por que tenho que conviver com o som de tiros de armas com diferentes e potentes calibres? Por que nossas crianças estão sem aula? Cadê a aplicação do ECA? Onde estão nossos direitos? Por que será que converso com cadáveres todos os dias na esquina da minha casa? Nem mais me sinto humano, se assim ainda me sentisse reivindicaria meus direitos-humanos. Ai sim! Quem sabe poderia fazer passeata na zona sul e vestindo branco. Quem sabe poderia dizer que existem balas perdidas na favela e acreditarem em mim. Quem sabe!
Não sei a quem recorrer. A polícia? Está aqui. Mas parece ter esquecido de quem deve proteger ou pra quem trabalha. Estão mais preocupadas em conter a chegada dos confrontos as vias expressas da cidade, do que, com o nosso direito de ir e vir, com a nossa integridade física. Triste ilusão a minha. Até parece que pobre tem isso, favelado tá mais para desintegridade física do que pra qualquer outra coisa.
São tiros, gritos, corre-corre, explosões, barulho de rádios transmissores, sussurros, mais tiros, tiros muitos tiros. Os tiros de fuzis de diferentes calibres tem sido a canção de ninar dos moradores da Maré. Assim como os projetes que teimam invadir nossas casas. A polícia? Assiste a tudo de lugar privilegiado: o caveirão. Parece, estranhamente, esperar por um desfecho (in)feliz. A quem devamos recorrer? Já sei! Façamos uma carta a Taurus, a Colt, quem sabe não param de produzir armamentos para o terceiro mundo? Sim, para o terceiro mundo. Ou alguém ainda acredita que se usará fuzil e pistola numa possível guerra mundial? Fabricam-se armas para os confrontos no oriente médio e para os traficantes africanos e sul-americanos. Jovens entre 13 e 25 anos arriscando a vida por nada. São meramente descartáveis, verdadeiros cadáveres vivos. Não são nada. Não representam ninguém. Por isso que a polícia espera um desfecho e sabe exatamente qual será. A sociedade capitalista abriu mão desses jovens, não há espaço pra eles. Investir neles para quê? Seriam mais estudantes exigindo cotas nas universidades públicas. Seriam mais negros favelados portando diplomas de doutores, questionando, questionando, questionando… Não sei por quem devo gritar. Quem sabe ao MC fulano de tal, para fazer uma letra de funk que nos alerte para o fato de que não passamos de marionetes humanas, que o grande lance é estudar, investir em si.
Porra, mais tiros! Será que mais um conhecido meu morreu? Será que deixou algum bem para sua família? Tenho certeza que não. Mas afinal quem ganha com esses confrontos? Não consigo chamar isso de guerra. Guerra pra mim tem um sentido mais digno, além do que não posso chamar de guerra quando na verdade as partes envolvidas mantêm algum tipo de diálogo, relação.
Vila do João, inaugurada em 1982, tem 27 anos. É uma vítima do tráfico. Nunca teve oportunidade, nasceu com o apelido de “Inferno Colorido” (imaginem porque), foi abandonada pelos pais e criada pelas madrastas e padrastos que só fizeram maltratá-la. Mas teve filhos, mesmo sem pais. Muitos já se foram, mas a grande maioria ainda continua aqui, acreditando, crescendo e envelhecendo com ela (quando conseguem). Feliz aquele que envelhece na favela. Porra, mais tiros! Mais um filho que vai, mais uma mãe que chora. Peço a Deus que proteja todos os filhos e filhas da Maré e que nossos “peitos de aço” segurem mais essa rajada, porque quem morre na favela por bala perdida, ainda deixa um triste legado para a família: o de provar sua idoneidade junto a mídia e a sociedade, pois quem morre na favela é sempre bandido. Polícia eficiente é isso. Elite da Tropa pra todo mundo assistir como é a ação da polícia na favela. Como dizem os “homens da lei”: “lugar de favelado é em casa”. Porra, mais tiros!
Francisco Marcelo – Morador da Vila do João há 27 anos