Entrevista: Frei David Santos
Desde antes dos tempos de padre franciscano em Petrópolis, quando foi perseguido pela Ditadura Militar ao lado de Leonardo Boff no início dos anos 1980, o Frei David Santos é um militante da causa negra. Foi a partir de seu trabalho na Educafro, organização fundada por ele em 1992 para gerar oportunidades de educação para jovens negros, que políticas públicas como a implantação do sistema de cotas nas universidades e o Programa Universidade para Todos (Prouni) se tornaram realidade para uma parcela que corresponde a mais da metade da população brasileira. O mineiro criado no Espírito Santo sabe que o caminho até a igualdade ainda é longo, mas segue acreditando em sua missão mesmo depois de quase 40 anos de militância.
A Voz da Favela: Como nasceu a Educafro?
Frei David Santos: A Educafro nasceu pela mobilização de padres franciscanos com o povo negro. Eu completo no ano que vem 40 anos de dedicação a essa causa. Em 1976, eu sofri racismo. Foi ali que eu acordei e descobri que era negro. Até então, eu era um branco queimado de sol. Ali nasceu a causa em mim. Foi quando quis começar a luta para que o povo negro tivesse mais dignidade.
AVF: A organização sempre teve como foco o acesso dos negros e pobres à universidade?
FDS: O foco número um foi, desde o início, a identidade: fazer o negro assumir que era negro. Mas esse trabalho por si só não se completa. Fizemos bem no início a assessoria de um encontro de cem jovens da Baixada Fluminense. Nesse encontro, eu pedi para levantar o braço quem queria fazer faculdade. A maioria ali era negra, e eu levei um susto: só dois, de todos eles, queriam. Então, nasceu a segunda missão: ajudar o povo negro a entrar na faculdade.
AVF: Quais foram os principais resultados da Educafro ao longo desse período?
FDS: Eu considero a Educafro a entidade mais bem realizada do mundo. A luta pelo Prouni foi da Educafro. Depois, a nossa grande luta foram as cotas na universidade. Vencemos. Outra grande luta foram as cotas no serviço público. Vencemos. A nossa organização sempre foi muito vitoriosa e gerou resultados positivos.
Em 1976, eu sofri racismo. Ali descobri que era negro.
AVF: Na sua opinião, em que patamar está a vivência do racismo no Brasil?
FDS: O racismo está cada vez mais explícito. O racismo não está aumentando, ele está só se explicitando. Ou seja, a consciência e as conquistas do povo negro fazem com que o racismo, que sempre existiu, fique mais às claras. Para nós, nada mudou. Estamos apenas exercendo nossos direitos na denúncia do racismo.
AVF: Sabemos que muito desse racismo se reflete nas favelas através das altas taxas de homicídios de jovens negros no Brasil. Como é possível combater isso?
FDS: A única maneira de combater o racismo é ajudando o negro a conquistar dignidade e identidade, a entrar numa universidade, a ocupar os espaços de poder. É a única maneira que temos para lutar contra isso.
AVF: O senhor falou anteriormente sobre a implantação do sistema de cotas. Como o senhor vê o sistema hoje?
FDS: As cotas são o sistema mais eficiente para dar dignidade ao povo negro. No momento, elas estão sendo corroídas pela burguesia branca. O índice de brancos que se declaram negros para entrar na universidade é altíssimo. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mais de 90% das vagas de negros foram fraudadas por brancos. A Educafro fez um trabalho forte na Universidade Federal de Pelotas e conseguiu fazer com que 25 brancos que fraudaram cotas fossem retirados da faculdade. Agora, estamos convencendo a universidade a abrir um edital chamando 25 negros para ocupar essas vagas.
AVF: Nessa perspectiva do governo atual, existe algum risco de haver retrocessos nessa política?
FDS: A nossa luta sempre foi por uma política de Estado, não uma política de governo. Pode entrar quem for, a política das cotas continua. A única ameaça que haveria hoje é os deputados e senadores colocarem um projeto em votação, mas nós lutaríamos fortemente para impedir.
AVF: A empregabilidade dos atendidos também é uma das missões da Educafro, através do braço Empodera. Como funciona isso?
FDS: Para nós, a empregabilidade é um compromisso. Muitos dos nossos se formavam na universidade e não conseguiam emprego. Estamos lutando para ampliar a conquista de vagas nas grandes empresas. Fazemos esse trabalho conquistando militantes radicais para a causa – radicais no sentido de dedicação aos direitos humanos, de fazer um trabalho de empatia para ganhar o convencimento das autoridades e dos empresários, oferecendo mais e mais oportunidades ao povo negro.
O racismo não está aumentando, ele está só se explicitando.
AVF: Na sua opinião, o que mais atrapalha essa colocação do negro no mercado de trabalho? É uma questão de formação, social ou puro preconceito?
FDS: Um país que mantém um povo escravizado por séculos e depois, excluído por quase 200 anos. É impossível que esse povo tenha dignidade, articulação e poder para mudar o seu destino. Somos 53% da população brasileira, mas não temos deputados como nós, negros. Não temos senadores. Por quê? Porque a nossa consciência de negro sempre foi fragilizada. Só vota em negro o negro que tem consciência. Nosso objetivo é ampliar essa compreensão. Trabalhamos dia e noite para isso por 40 anos.
AVF: Vocês ficaram bastante conhecidos na última década também pelos protestos, principalmente os realizados durante a São Paulo Fashion Week. De que maneira essa ocupação de espaço é importante para o reconhecimento da identidade negra?
FDS: Sim. Hoje, se três das dez mulheres mais bonitas do Brasil são negras, é resultado de muita luta nossa, fazendo denúncias na SPFW e outros eventos de moda onde não havia espaço para a mulher negra. Então, é importantíssimo. Colocar o negro em um espaço nobre da sociedade é fazer com que os demais acordem e nos percebam como portadores de direitos.
AVF: A autoestima tem sido bastante valorizada pelo que é conhecido como Geração Tombamento. Como o senhor enxerga esse movimento da juventude negra hoje?
FDS: Há várias compreensões a respeito disso. Eu prefiro a linha daqueles que vendem a imagem de empoderado muito mais para dar referência aos seus irmãos, não tanto aqueles outros que se empoderam por vaidade. Nós entendemos que o povo negro precisa de referências. Tivemos em São Paulo a consulesa francesa (Alexandra Loras), que tem um poder de articulação do povo negro incrível. Temos também a (jornalista) Maju Coutinho. Por ela ser da TV Globo e negra, ela puxou muita gente. Nós, negros, precisamos de referências de sucesso no nosso meio. Só assim vamos conseguir fazer com que o nosso povo comece a gostar de ser negro.
AVF: O senhor acredita que, com todos os avanços dos últimos anos e apesar também dos retrocessos recentes, podemos sonhar com a chamada democracia racial no Brasil?
FDS: Prefiro não falar de democracia racial, é um termo viciado. Eu prefiro sonhar com o equilíbrio na igualdade de oportunidades. Só temos dois caminhos, que são os que a Educafro privilegia: a conquista da identidade pelo próprio negro e o ingresso na universidade. O resto é consequência do processo de empoderamento.
Publicado na edição de junho de 2017 do Jornal A Voz da Favela.