Em meio ao protesto de familiares de policiais no Espírito Santo, que gerou uma paralisação de sete dias, acumulando mais de 120 mortes, e ao medo da população do Rio de Janeiro que o mesmo ocorresse aqui, a Polícia Militar voltou a ser pauta de diversas discussões. Criada em 1808, na chegada da família real no Brasil, tinha como objetivo à época garantir a segurança da nobreza e necessidade de manutenção da ordem pública com o crescente aumento populacional. Assim, foram criadas corporações nas províncias brasileiras.
Como é esperado de uma instituição, os cenários e os objetivos, seja na teoria ou na prática, tendem a mudar no decorrer de 200 anos. Antes de qualquer suposição, é ingênuo demais achar que a Polícia Militar é o único câncer da segurança nacional enquanto existem outros órgãos, tais como Polícia Civil, Guardas Municipal e – por que não? – todo o sistema penitenciário. Também soa problemático considerar que 43.500 pessoas, espalhadas por 41 batalhões, pensam e agem de forma igual – ainda que devessem. Uma organização tão fundamental como a polícia deveria garantir bem-estar e segurança constantes para todos os moradores, independente do estrato social. Essa é uma realidade distante das periferias, que padecem sem proteção e, pior, ainda os tomam como algozes.
Portanto, a única garantia que é constante e vinda da Polícia Militar são os atos violentos de suas incursões. Os abusos e abordagens truculentas são tão cotidianos quanto assombrosos. Há quem aplauda – e esse, sim, é o câncer da segurança não só no estado do Rio de Janeiro, mas no Brasil. As estatísticas não permitem precisar se a maioria da população prefere os direitos humanos ou os bandidos bons e mortos, mas, claramente, vemos um paradigma vencedor nas cabeças do alto escalão das autoridades. Posso garantir que não é aquele que privilegia a população pobre.
Talvez como a síndrome de Estocolmo (em que a vítima cria uma relação afetiva com seu algoz), policiais e uma parcela da população não parecem questionar a lógica doentia e dizimadora posta em curso desde a Ditadura Militar. Mesmo desvalorizados, renegados, sem segurança no trabalho e sem salários compatíveis, policiais continuam perpetuando o agir sem pensar. Mesmo esculachados, baleados e acuados em seu direito de ir e vir, a população ainda responde que “tem que matar”. A sociedade é preconceituosa e militarista, e não restam dúvidas que escolhem governantes pela mesma lógica.
Quantas vezes ao dia a população sonha em se armar para matar assaltantes? Somos capazes de sequer imaginar que as mudanças do Estatuto do Desarmamento podem ter sido motivadas pelo financiamento de campanhas dos parlamentares pela indústria de armas? A redução da idade necessária para compra de armas de fogo não é uma falácia inventada pela esquerda (PL 3722/2012).
Quando morrem dez policiais, a solução é colocar mais dez. Se morrerem 50, que sejam 50. Trata-se de uma lógica belicista que não dá certo, mas que é aplaudida de pé. Quantas mensagens recebemos por dia, sugerindo que os “caras dos direitos humanos” participem de rebeliões morrendo com os presos? Quantas destas se dão o trabalho de raciocinar sobre a cultura violenta que extermina tanto os pobres quanto a própria polícia?
Não basta desmilitarizar o que quer que seja sem antes desmilitarizar a consciência. Policiais e população: o inimigo precisa ser outro.