O Brasil não é uma ditadura, mas também não é uma democracia. Ironicamente, é parecido com a Venezuela: tem governo autoritário eleito, sustentado pelo exército e pelo Judiciário, e uma corrupção que brota nas suas vísceras há seculos. O petróleo também é um traço comum: os venezuelanos mantêm e defendem o seu, ao passo que nós entregamos o nosso de mão beijada às multinacionais. Outra diferença marcante é o forte apoio popular ao presidente Nicolás Maduro. E com todas as conturbações institucionais e políticas vividas neste século, lá não houve vazamento de óleo como o que acontece desde agosto no Brasil.
Mas, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, repete como mantra que “o óleo é venezuelano”, apesar das evidências e denúncias indicarem inexperiência/imperícia das multinacionais na exploração em águas profundas, especialidade da Petrobras. Aliás, não dá pra entender por que uma empresa com esta expertise ainda não descobriu e tornou pública a origem do vazamento.
Como bom ministro de Bolsonaro, Ricardo Salles deve ter sofrido bullying e violência na infância, tal a perturbação mental emanada dos absurdos que diz. No tuíter, por exemplo, embaixo da foto de um dos três navios do Greenpeace, sugeriu que ele teria vazado “óleo venezuelano” no litoral brasileiro, porque navegava por ali na ápoca. Pois um site verificador de fake news mostrou que os três navios da ONG estavam pelo menos a 2,5 mil quilômetros quando começou o desastre ecológico. Salles é mentiroso contumaz, discursa na Europa que o governo brasileiro cuida muito bem do meio ambiente, enquanto a Amazônia arde em chamas e os “correntões” derrubam árvores às dezenas em cada passagem.
À parte a questão ambiental em si, uma preocupação de ordem econômica ronda a atividade turística nas praias nordestinas: 21,4% dos turistas brasileiros preferem visitar anualmente a Bahia e 11,9% Pernambuco, segundo as agências de viagens. É compreensível o setor hoteleiro não alardear prejuízos e sustentar otimismo enquanto atua com voluntários nas praias poluídas. Mas o cenário preocupa: no meio da semana passada, em Pernambuco, 17 pessoas haviam procurado unidades de saúde com problemas dermatológicos e respiratórios causados no recolhimento do óleo. O número cresce a cada dia em outros estados também, assim como os sintomas de intoxicação.
Vale lembrar, ainda, que economia e ambiente se mesclam nas águas territoriais brasileiras de onde retiram-se 85% do petróleo, 75% do gás natural e 45% do pescado, conforme dados da Marinha contidos no seu plano estratégico Amazônia Azul, que abrange 5,7 milhões de quilômetros quadrados de águas, equivalentes a mais da metade dos oito milhões do território continental brasileiro. Ricardo Salles ignora estas informações como costuma fazer com todas as que demandam esforço de raciocínio ou colidem com com sua tosca argumentação.
Ainda na secretaria do Meio Ambiente do governador Geraldo Alckmin, em São Paulo, ele foi condenado por improbidade administrativa por ter aliviado punições a uma empresa desmatadora, e hoje circula na internet abaixo-assinado com mais de 20 mil adesões exigindo sua demissão do ministério. No entanto, se Bolsonaro o escolheu para destruir o ambiente não é provável que se sensibilize com a iniciativa popular.
Aliás, a indicação de Ricardo Salles para o ministério foi recebida pelo Greenpeace da seguinte forma: “Seguindo as promessas do presidente eleito, a principal função do novo ministro será a promoção de uma verdadeira agenda anti-ambiental, colocando em prática medidas que resultarão na explosão do desmatamento na Amazônia e na diminuição do combate ao crime ambiental. O que já está ruim pode piorar”, profetizou Márcio Astrini, coordenador de políticas públicas no site da ONG. Acertou na mosca!
Salles se refere ao chefe em redes sociais como “querido presidente Jair Bolsonaro”, vencendo por um focinho, no quesito “baba ovo”, o chanceler Ernesto Araújo, que saudou a escolha de Eduardo para a embaixada nos Estados Unidos como “excelente nome”. Deu no que deu.
Em visita a praias banhadas pelo óleo derramado, o ministro criticou o Greenpeace por não ajudar na recuperação da área afetada. Bolsonaro também reclamou: “Para mim isso (o vazamento) é um ato terrorista. Para mim, esse Greenpeace só nos atrapalha”. Por sua vez, a Shell informou ao governo a venda de 25 tambores de lubrificante a duas empresas que poderiam ter causado o vazamento, uma baseada nos Emirados Árabes e outra na Monróvia. Parece manobra para desviar o foco das prováveis investigações em andamento na Polícia Federal e na Marinha.
Na condição do anonimato, dois engenheiros da Petrobras denunciam que o óleo vem do fundo do oceano porque está sendo usado por operadoras estrangeiras vencedoras da partilha do pré-sal em Tupy o método de alta pressão na retirada do petróleo das jazidas. É a repetição do que fez a Chevron na Bacia de Campos, que causou grande fissura no leito do mar e derramamento de óleo na região norte fluminense anos atrás.
A entrada de 4,5 mil homens da 10ª Brigada de Infantaria Motorizada, sediada em Recife, no esforço de recuperação ambiental das praias foi anunciada pelo vice-presidente Hamilton Mourão como decisão do exército – não sua obrigação nem atribuição. No mesmo tom, perguntado por que o exército “decidiu disponibilizar” seu pessoal dois meses e meio depois de começar o vazamento, o ministro da Defesa, general Fernando de Azevedo e Silva, saiu-se com esta: “Não julgávamos necessário”. Demonstração do humor carioca do ministro, ou de fato ele julgou de início que o desastre ecológico não estava entre as preocupações da defesa nacional. Mas, o exército teve o cuidado de tirar os voluntários da praia para os soldados aparecerem sozinhos na mídia fazendo todo o trabalho.
“Querido presidente”, “excelente escolha”, “decidiu disponibilizar” e “não julgávamos necessário” são exemplos de discurso do governo autoritário que, sonhando com a ditadura, não exibe nenhum cacoete democrático. Militarizado além da conta, segue as normas da caserna: ordem, disciplina, hierarquia e pouca ou nenhuma satisfação à sociedade civil. Militares em geral, e os do exército em particular, se consideram casta iluminada com poder de dirigir os destinos da nação e dos cidadãos.
Este caráter marca a república desde 1889 e ficou mais uma vez patente em 1964, com o golpe contra João Goulart. Entre as providências inaugurais do regime de exceção, o exército acabou com os antigos guardas civis e ressuscitou a polícia criada em 1808 para proteger a coroa portuguesa recém desembarcada na colônia. Desde a ditadura, esta PM continua sob sua égide, apesar do clamor democrático pela desmilitarização da segurança pública brasileira. Até hoje os comandantes das PMs são aprovados pelo comando do exército.
Quando o policial militar mete o pé na sua porta, bate na sua cara, mete a mão na sua bolsa ou submete você a vexames e riscos de vida diários, está apenas cumprindo ensinamentos e ordens do exército. A Polícia Militar, em todos os estados da federação, é o braço armado repressor da cidadania incipiente e fraca diante dos esquadrões da morte das décadas passadas, das milícias e da segurança privatizada atuais. Vem de longe a passividade com que nos comportamos diante de desmandos e abusos, torturas, desaparecimentos e intimidações permanentes.
O exército é o mentor do estado policial, a instância superior garantidora da “normalidade institucional”. Basta ver como os supremos magistrados da nação tremem diante dos humores militares quanto à liberdade de Lula. E agora mesmo, receoso dos protestos que hão de estourar por aqui, Bolsonaro determinou ao exército que se prepare para a guerra interna. Acredita, como muitos, na máxima popular “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
No Brasil, o povo foi escolhido pelas forças armadas como inimigo interno a ser contido, combatido, controlado, eliminado. Por isto os crimes contra civis são julgados por militares, por isto a palavra de um soldado da PM tem fé pública, ou seja, vale mais do que a de qualquer civil, na delegacia ou no tribunal. Por isto a reforma da previdência não atinge militares, por isto seus privilégios constituem uma casta dentro da sociedade. Por isto autoridades públicas dizem e fazem o que querem, juízes condenam sem provas – não existe compromisso com a ordem democrática, com a constituição. Não está satisfeito? Vá pra Venezuela!
Isto chega a ser curioso e sintomático da alienação nacional a que estamos forçados por essa república de mentiras e “verdades alternativas”. Enquanto os brasileiros não querem que o país se torne uma Venezuela, outros povos não querem que seus países virem um Brasil. O mundo está assustado com os rumos do bolsonarismo e a rapidez com que ele avança sobre a nossa democracia que já nem é tão democrática assim. Lembrem-se das palavras de Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para direitos humanos: “O espaço democrático está se reduzindo no Brasil”.
Mas – e sempre tem um porém – o Brasil não está isolado no mundo, nem lidera a onda internacional conservadora e retrógrada. Aqui mesmo no subcontinente, a Argentina está mudando através do voto, e Chile e Equador experimentam fortes turbulências sociais contra o modelo em franca implantação no Brasil. E não podemos sequer responsabilizar o presidente, cujo papel nesta tragicomédia de enredo ruim está entre o de rainha da Inglaterra e o de inspetor de costumes.
Agora mesmo anunciou que vai conversar com Ricardo Salles para se informar dos detalhes do vazamento, ou seja, continuará “queridamente” desinformado. É um presidente patético. No Japão para a entronização do imperador do sol nascente, deixou-se fotografar metido num mix de maitre de restaurante fino, recepcionista de baile de gala, napoleão de hospício, porteiro de boate de luxo e destaque de carnaval. Observe, atento leitor e leitora perspicaz, a foto e escolha seu malvado favorito – sem direito a final feliz, vou logo avisando.