“Qualquer pessoa pode se tornar poeta. É só ela se descobrir”

Créditos: Carol Almeida / ANF

Entrevista: Jessé Andarilho

Aos 36 anos e pai de dois filhos, o escritor e cria de Antares Jessé Andarilho quer incentivar a leitura a quem não gosta de ler, principalmente as crianças moradoras de favela. Isso porque nem ele mesmo gostava. A paixão pela leitura surgiu tarde, aos 24 anos, quando leu o primeiro livro.

Foi no trem que Jessé Andarilho escreveu sua primeira obra, no celular, entre vindas e idas do trabalho. O romance Fiel (2014) o levou até a Feira do Livro Infantil de Bolonha, na Itália, e acabou nas listas dos melhores títulos brasileiros de 2015. Jessé já participou também da Bienal do Livro e da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty. Publicou nove antologias. O segundo livro, Efetivo Variável (2017), foi lançado em outubro. Criou a chamada ideologia Marginow, que valoriza a cultura da periferia, e o Sarau Tá no Ponto, que acontece toda segunda embaixo do Viaduto de Madureira, Zona Norte do Rio.

Nada mal para o garoto que foi reprovado em Língua Portuguesa cinco vezes na então 7ª série do Ensino Fundamental (equivalente hoje ao 8º ano).

 

A Voz da Favela: Você acha que qualquer marginal, qualquer pessoa que está à margem da sociedade, pode se tornar poeta?

Jessé Andarilho: Com certeza. Qualquer pessoa. É só ela se descobrir. Se ela não tiver o contato com a arte, não vai saber que é artista. Às vezes, você está em um trem, tem um cara lá vendendo, te convencendo a comprar – isso é uma arte, pô. Você nem quer comprar um amendoim, mas a pessoa vem, faz uma rima, uma brincadeira.

 

AVF: O que te estimulava a escrever dentro do trem, depois de ter trabalhado o dia inteiro?

JA: Escrevia para poder passar o tempo. Poderia estar jogando baralho com os caras ou escrevendo uma parada que daqui a dois anos ia me tirar do trem e me colocar em um avião.

 

AVF: Ler e escrever dentro do trem foi a maneira que você encontrou para burlar o sistema educacional brasileiro?

JA: Não pensei em burlar, só que foi um tapa na cara do sistema educacional. Como é que eu, que repeti cinco vezes a 7ª série em Português, fiquei devendo a matéria no Ensino Médio, sou (hoje) um autor do maior grupo editorial do mundo, do maior selo editorial do Brasil? Como pode isso? O sistema educacional brasileiro prepara as pessoas para serem operárias. É a hierarquia escolar, que tem a figura daquela pessoa atrás da mesa que é muito acima de mim, de que o professor é dono da verdade. Não tem aquela troca que deveria ocorrer. A faculdade é vista como uma coisa que não é para a gente, na nossa cabeça. A gente não vê um professor preto. Não vê o cara da favela virando médico. Ter, até tem, mas o cara some, nunca mais volta lá. Nunca fala que morou lá. Ter uma referência é muito importante. Mesmo que não more mais na favela, mas que esteja presente lá, fazendo ações pro moleque ver.

 

AVF: O que a literatura representou e representa hoje na sua vida?

JA: Não gosto de endeusar a literatura. Vejo um livro como uma conversa. Vai sentar e ouvir a pessoa. Só que ninguém quer ouvir, só quer falar. E o livro é isso: parar e ouvir uma pessoa durante 20 horas. Então, vejo a literatura como uma conversa. Se quero conversar com uma cara que fale sobre periferia, vou ler um livro que fale sobre periferia.

 

AVF: Qual é a importância do livro? Ele tem o poder de transformação?

JA: A leitura abre sua mente, cara. Abre seu leque de possibilidades. Não acho que o cara que lê muito é melhor do que o que cara que não lê. Mas ele tem mais possibilidade de se dar bem, de realizar o sonho dele.

 

AVF: Se toda criança que vive em situação socioeconômica precária tivesse acesso à literatura, o que poderia mudar?

JA: Na minha concepção, a literatura, principalmente a infantil, faz com que as pessoas abram a mente pro imaginário, para pensar. Se eu invisto no pensamento, invisto em coisas futuras a serem criadas, coisas boas. A literatura tem esse papel fundamental de fazer a criança imaginar, pensar em outro mundo, em outras vidas, em outras coisas, no universo da fantasia. Acho muito importante esse universo, porque ele é atrativo. A pessoa começa a viajar e fantasiar a realidade dela. Ela começa a querer ser alguma coisa, sonhar. Se eu tirar a literatura da criança, se não invisto em literatura, é a mesma coisa que tirar sonhos. Eu posso ficar trancado em um quarto, eu posso viajar o mundo inteiro pelo meu imaginário através da leitura. Agora, trancado em uma favela, se não tenho o hábito da leitura, vou imaginar só em cima do que eu estou vendo, do que estou vivendo. Não vou abrir novas possibilidades na minha cabeça.

 

AVF: Qual é a importância de um escritor criado na favela mostrar outra visão de mundo para quem mora ali?

JA: É importante por falar de igual para igual. Vou às escolas dar palestra, falo “o bagulho é doido!” e as crianças começam a rir. Na minha concepção, o escritor deveria ser um homem branco, gordo, barbudo, velho e morto. Eu não vi escritores passando pela rua, autores passando, era uma coisa impensável. De repente, você está em um lugar e vê um cara igual a você, que fala igual a você, anda igual a você, se veste igual a você, que é um autor. Um escritor que fala que livro é legal, que é muito maneiro, que tem livro chato também – óbvio –, é diferente, pô. Quando as pessoas têm um mesmo estilo de vida, quando elas se parecem, é mais fácil convencer.

 

“A leitura abre sua mente, seu leque de possibilidades.”

 

AVF: Como tornar o crime desinteressante para as crianças que moram em favela?

JA: Dando outra possibilidade. Se o governo planta cultura, arte, educação, ele vai colher escritores, bailarinos, músicos. Agora, se ele só investe em segurança pública, comprando arma e munição, ele vai colher Nem, Rogério 157, Fernadinho Beira-Mar. Se plantar cultura, vai colher cultura. Se plantar violência, vai colher violência.

 

AVF: Na sua opinião, o que falta para que as crianças se interessem pela leitura?

JA: Faltam mediadores de leitura. Conheço professores nas escolas onde vou que não leram um livro esse ano. Como vou indicar um livro para as crianças se eu mesmo não li? O papel está no mediador de leitura. Pode ser um professor, uma mãe, um vizinho, pode ser eu ou você. Falta essa mediação, essa pessoa que fala: “Esse livro tem a ver contigo porque fala disso, tu vai gostar, é a tua linguagem”. O papel do mediador é fundamental.

 

AVF: O que é o Marginow?

JA: Marginow é uma ideologia. Surgiu depois que lancei o livro Fiel em 2014, quando comecei a ser chamado pra vários eventos no Brasil e, todas as vezes em que meu nome estava na programação, era como “autor de literatura marginal”. As pessoas sempre procuram uma forma de diminuir o que você faz te rotulando. Eu sempre gostei de brincar com as palavras. Now significa “agora” em inglês. Aí, fiz a transição de quem veio da margem para o now, para o agora. Então, o Marginow surgiu com essa ideia de juntar uma galera que veio das margens e está conseguindo o seu lugar no agora. Vamos juntar essa galera e começar a fazer ações. Como dar visibilidade às pessoas? Como eu tinha experiência em audiovisual, tive a ideia de criar o “Poesia Marginow em um minuto”, publicado na página Marginow no Facebook, colocando pessoas da periferia falando poesia em um minuto e gravar as que têm reconhecimento no cenário cultural do país.

 

AVF: O que te estimula a ajudar essa galera?

JA: Quando eu tava começando, queria ter isso, mas não tive. Queria ter pessoas pra falar: “Pô, esse cara escreve bem”. Ouvi uma frase há um tempo, que diz que, quando você está sozinho, você chega rápido, mas, quando você está em grupo, você chega longe. Quero chegar longe, porque não vou ser o único preto favelado no evento, igual à mesa da Flip, em que era o único cara de bermuda, chinelo e boné. Fui barrado três vezes na Bienal do Livro de 2015, mesmo com o crachá. Então, quanto mais pessoas estiverem ocupando nosso espaço do jeito que vieram ao mundo, do jeito que se sentem bem, menos eu e outras pessoas serão discriminadas no dia a dia.

 

AVF: Qual é a visão que esses marginais dão ao mundo da favela, qual é a visão que eles trazem?

JA: Nossa vivência, nossa realidade. Quem disse que falar gíria é feio e é errado?  A gente sofre muito preconceito pela forma de nos vestirmos, a forma da gente falar, da gente se impor para a sociedade. Então, quando a gente mostrar que merecemos respeito também, teremos força para falar, tendo bom alcance. É como se fosse um grito de liberdade. As pessoas têm mania de rotular e dizer que a arte só está nas academias. Mas quem tem o poder de dizer o que é arte e o que não é? Se isso é cultura ou não é?

 

AVF: Qual é a relevância de trazer esses marginais para grandes centros?

JA: Ainda que seja marginalizado pela forma de me vestir, tenho que ocupar os espaços. A cidade é nossa. As pessoas que falam do cidadão de bem não estão incluindo o favelado. Eles acham que a favela está à parte da cidade. Mas a favela faz parte da cidade. Se a favela parar, para tudo. Quem é que vai dirigir os ônibus? Nós também temos nossa importância, não devemos estar à margem de tudo. A gente tem que fazer parte do cenário político e do cenário cultural.

 

AVF: Quantos livros são necessários para que um jovem não morra nas favelas do Rio?

JA: Um livro. Tem que ter o primeiro. Tem que ter “o livro”. O livro que me fez gostar de livros foi No Coração do Comando (de Julio Ludemir). O que me fez escrever foi Zona de Guerra (de Marcos Lopes), que, quando li, falei: “Pô, cara, isso aqui é um livro? Vou fazer o meu”. E aí, então comecei.

Publicado em novembro de 2017 no jornal A Voz da Favela