Em texto publicado não faz tanto tempo assim, o coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, pastor Ariovaldo Ramos, contou uma história exemplar que merece análise de estudiosos das relações entre política e religião no Brasil atual: “A Frente estava numa das concentrações do ‘vira voto’ nas eleições de 2018, carregando a sua faixa, quando três pessoas pararam diante da faixa e começaram a chorar. Sem entender o que estava acontecendo, as pessoas que estavam atrás da faixa, perguntaram o porquê do choro”.
“Os que choravam perguntaram se os que carregavam e estavam atrás da faixa eram, de fato, evangélicos. Diante da resposta positiva, perguntaram se “crentes” podiam estar ali, se podiam tomar aquela posição. Quando ouviram mais uma resposta positiva, ainda sob lágrimas, começaram a exclamar: Então podemos voltar para a Igreja? Os que nos expulsaram disseram que não éramos mais fé e não podíamos mais cultuar! Cenas como essa voltaram a se repetir, era o custo de ter se posto contra o candidato da extrema direita”.
Ariovaldo integra o movimento político criado em 2016 na luta pelo estado de direito, a Frente que participa de fóruns e manifestações onde julga importante a palavra em defesa do estado de direito, dos direitos humanos, da igualdade social e de todos os temas correlatos, como o genocídio da população negra, pobre e jovem do país. É recente o movimento e ainda causa espanto e confusão entre evangélicos espalhados por tantas igrejas cujos líderes oram e apoiam o governo Bolsonaro.
“Graças a confusões teológicas e informações mal intencionadas provenientes, principalmente, da igreja evangélica estadunidense, evangélicos brasileiros passaram a ser possuídos pelo medo do martírio na mão de comunistas, entre outros, e pelo medo da erotização de seus filhos”, explica o pastor. “O candidato da extrema direita, bem assessorado, soube se aproveitar muito bem desse medo, se inserindo nessa articulação internacional, e aparecendo como o grande protetor dos amedrontados. Muitos líderes denominacionais, de amplo espectro, envolvendo desde os protestantes históricos até os neopentecostais mais extremados, embarcaram nessa onda, transformando essa posição em questão de fé. Claro que os conhecidos por sua venalidade não perderam a oportunidade de ganhar com a adesão”.
A presença de evangélicos norte-americanos ligados ao Partido Republicano mais conservador, ao presidente Donald Trump e à máquina montada para sua eleição é percebida no Brasil há muito temo, mas a relevância política vem de alguns anos, mas com tal força que provocou reação dos setores evangélicos mais preocupados com o espírito do que com a carne. Evangélicos de todos os matizes começaram, então, a ser expulsos como traidores da fé evangélica, que elegeu uma ideologia como parte de sua declaração de fé.
“O que fizeram esses evangélicos? A exemplo da história contada no inicio, começaram a buscar algo que os mantivesse na fé até que se achassem comunitariamente. Movimentos políticos, como a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, foram se multiplicando, alguns, como a Frente, se mantiveram eminentemente políticos, outros foram gerando novas denominações, com corte progressista enquanto militam pela democracia”, explica Ariovaldo Ramos.
Com a chegada da pandemia, que exacerbou e visibilizou o desgoverno neonazista, como não tinha ficado nítido ainda, muitos evangélicos estão revendo a sua posição. Ainda não está claro que contornos serão desenhados a partir desta revisão. Algo parece certo: “Nada será como antes”, diz. “A fé protestante preza pela liberdade de consciência, pelo zelo com a criação, pelo estado democrático de direito, pela educação universal, pela igualdade entre seres humanos, por meio da justiça social e pela exigibilidade dos direitos humanos”.
É com base neste postulado que a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito estabelece seu decálogo nos princípios do humanismo cristão a seguir:
A fé protestante repudia o racismo e toda e qualquer manifestação racista.
A fé protestante repudia toda forma discriminação da pessoa humana.
A fé protestante repudia o genocídio. Portanto, repudia o genocídio em curso, no Brasil, contra os negros e os indígenas.
A fé protestante repudia o machismo e a misoginia, com todo o preconceito e agressão decorrentes, assim como repudia a desigualdade de gênero.
A fé protestante apoia o feminismo.
A fé protestante repudia toda a letalidade policial, e todo estímulo à violência por meio da abertura ao armamento pessoal.
A fé protestante repudia toda a tentativa de desqualificar o fato de que o policial é agente do Estado, e que, portanto, não pode ter licença para matar e nem pode justificar o assassínio em serviço.
A fé protestante repudia um governo que faz, no mínimo, vistas grossas para com os ataques à biodiversidade, e promove a destruição do sistema educacional, assim como a uma política econômica geradora de miséria e deletéria para a previdência social.
A fé protestante repudia o uso da Bíblia para apoiar golpe de Estado, como fez Camacho na Bolívia, ou para apoiar governo de extrema direita com viés neonazista, como fazem alguns crentes no Brasil. A Bíblia foi escrita por libertos da escravidão e é libertadora.
Como protestante recuso-me a crer que quem quer que se diga protestante se deixe levar por postulados diferentes do exposto.