“A violência doméstica não oferece rota de fuga. As mulheres que se encontram nessa situação precisam de um esforço imenso e de uma ruptura psicológica significativa para que possam construir a sua saída de emergência. Uma mulher não se mantém num relacionamento desses “porque gosta de apanhar”: ela se vê completamente sozinha e vulnerável, tendo apenas seu próprio agressor como testemunha. Compreender como esse ciclo opera e oferecer solidariedade às mulheres que nele se encontram é o primeiro passo para encorajá-las a quebrar esse processo e buscar ajuda.”
Há essa hora, exatamente, talvez até muito próximo de você, há um agressor violentando uma menina ou uma mulher. E com certeza, há essa hora, exatamente, há um número imenso de meninas e mulheres sendo violentadas também psicologicamente. Precisamos entender que o crime contra uma mulher, por ser mulher, começa bem antes da sua morte. Na verdade, é uma longa história, que começa, na maior parte do tempo, dentro de casa, com a educação diferenciada entre meninos e meninas. Depois, nas relações, aparece disfarçada de ciúme ou um xingamento, seguida por pequenas agressões. E vai aumentando até o momento em que há um assassinato.
Pouco se fala, mas o suicídio, quando a mulher não suporta mais a situação de violência, deve ser contabilizado como feminicídio. Na África do Sul, a estudante Khensani Maseko, que havia sido violada no campus da universidade, três meses antes, cometeu suicídio:
“Ninguém merece ser violada”, escreveu no dia em que pôs fim à vida.
O feminicídio é uma questão de todos. E algo estranho acontece já na linguagem, nos modos como se fala do tema. Em geral, a vítima é questionada abertamente enquanto o agressor tem condições de se safar e até de repetir a violência. As relações onde a violência ocorre quase sempre estão montadas num desequilíbrio de forças pelo qual a menina ou mulher estão de alguma forma subjugadas. Seja pela falta de dinheiro, seja pela constituição física ou por terem sido educadas desde meninas para serem dóceis.
Num relacionamento abusivo, que começa como uma história de amor, a sedução vem em primeiro lugar. Logo depois o controle começa: – Ah, esta saia está muito curta, – Este batom é muito vermelho, – Aquela sua amiga é má influência. E assim, vai crescendo, a mulher vai sendo submetida, isolada e cai numa armadilha da qual é muito difícil sair. E quando ela pede ajuda corre o risco de ser assassinada. Essa teia repleta de situações envolve assédio, abuso e estupro, que acontecem, na maior parte dos casos, em casa, no seio da família, lugar onde deveriam se sentir seguras. E aí já aparece uma das maiores crueldades da violência contra meninas e mulheres: os agressores são os pais, padrastos, familiares, líderes religiosos, educadores e vizinhos.
Precisamos falar sobre feminicídio. A violência começa a ser enfrentada quando começamos a falar sobre isso, a denunciar, a cobrar medidas de proteção e segurança, a cobrar atendimento digno para as vítimas e punição justa para os agressores.
Não podemos parar de falar já que os dados mostram que os números crescem a cada instante. É imperativo colocar em primeiro plano a violência contra as meninas e mulheres negras, que são as mais atingidas. Quando, afinal, começamos a matar uma mulher, apenas por ser mulher? Os relatos mostram que a violência psicológica – que não deixa marcas visíveis -, acontece primeiro. Nas histórias ditas de “amor” a sedução vem antes. Depois atitudes e gestos ambíguos, quase imperceptíveis. Até se transformarem em violência recorrente.
Enquadrar este grave problema como pauta das mulheres é um equívoco que perpetua a violência. É um problema também dos homens que agridem. Num caso de violência contra mulher é a ela que se dirigem as questões: Por que ela usou aquela roupa? Por que voltou para casa sozinha? Por que não largou o marido abusivo? Por que não denunciou antes? Essa enxurrada de perguntas faz com que o agressor fique de fora, quase ileso. Ao contrário, é dele que precisamos falar. Ele é que deve responder pelo ato violento. A mulher precisa ser acolhida e respeitada em seus direitos, sobretudo, nos espaços de atendimento é preciso mais respeito e empatia:
“Criar ou fortalecer os espaços onde a mulher resolva suas necessidades ali. Porque se ela chega no serviço de saúde e conta uma história. Ela tem que chegar na assistência social e contar a mesma história. Tem que chegar nas delegacias e contar a mesma história. Para cada história contada ela sofre uma violência. Então a gente precisa estruturar os nossos serviços para que todas as portas de entrada deem respostas às reais necessidades das mulheres vítimas ou em situação de violência.” (Depoimento de uma funcionária de hospital que recebe mulheres que foram vítimas de estupro)
Entre nós, mulheres, a sororidade é urgente e obrigatória. E cabe a toda a sociedade apoiar e denunciar. Como dizem algumas campanhas, em briga de marido e mulher temos de meter a colher. Se a violência acontecer com você (lembre-se que qualquer comportamento ofensivo, de humilhação ou que cause sofrimento psicológico já é uma violência), conte para a família, para os amigos, para os vizinhos e até para estranhos. Saiba que há uma rede de proteção que você pode acessar. E o silêncio é uma sentença de morte.
*Matéria publicada no jornal A Voz da Favela Edição de Setembro