Carolina é uma mulher bem difícil de esquecer, tem em suas palavras a vida visceral que muitos não gostam de saber que há, que fingem não existir. Ela, como forma de protestar, chama esse lugar de quarto de despejo. Aquele lugar onde você joga tudo o que não lhe serve mais, que já está gasto.
Ler Carolina é como ver um filme pessoal, em muitas partes do livro, entre folhear e observar eu me sentia novamente e de novo e de novo, como se as cenas passadas se repetissem palavra por palavra.
A realidade dos dias que já se passaram por aqui, bem parecida com a narrativa apresentada na obra literária de Carolina Maria, pareciam querer saltar das páginas.
“Bebe água. Coloca o dedo na boca e dorme que a fome passa.”
– Minha mãe dizia à Valéria, minha irmã mais nova, nos dias que não tínhamos o que comer. Até um dia desses ela só dormia com o dedo na boca. Era a tal da lacuna emocional e social, ali aberta, escancarada e mostrando nossas vulnerabilidades.
Seguir parte à parte de “O quarto de Despejo” era refazer em flashs, os tempos que andei fedida na carroça para vender latinhas, garrafas pets ou os cobres que durante algum tempo, acabaram com as minhas digitais.
Enquanto martelava os materiais para amassá-los, as lágrimas caiam de ódio e eu perguntava ao Deus em quem eu mantinha minhas certezas, porque ele não dava ordem para tudo mudar.
Eram horas indo até os lugares, recolhendo os materiais pós obras de igrejas. Depois seguia em mais um dia para desparafusar, queimar e vender os cobres e todos materiais que pudesse.
Lembro de quando conseguimos 300 reais em um só dia e foi o dia mais feliz daqueles tempos.
Carne, ovo, leite, biscoito e um trocado pra procurar emprego.
Naquela semana, o julgamento e exclusão de tantos que se diziam amigos e se distanciaram quando me viam remexendo no lixo, não me seguiram. Eu não precisaria andar 40 minutos até o Morro do Garibald, subir aquela ladeira íngreme e esperar os moradores trazerem quilos de arroz e feijão. Naquele dia eu não teria que pedir para a merenda da escola ser levada pra casa.
Nós teríamos dias normais, dias que deveriam ser a principal demanda suprida na vida de qualquer ser humano. Na vida de qualquer família.
Eu queria mesmo era colocar os dentes da minha mãe, mas por hora comer e manter-se bem era a demanda mais urgente.
A fragilidade exposta nas lágrimas escondidas daquela mulher forte, se misturava com as lembranças de quando após um dia de faxinas de vendas no trem, ela me trazia um livro, sentava ao meu lado e contava uma história.
No fundo eu sabia. Aquele momento era pontual e nós três seguíamos, eu minha mãe e minha irmã, confiando que tudo mudaria em breve. O problema é que com o tempo aqueles dias pareciam longos demais. Bem mais extensos do que meus olhos gostariam de observar.
A literatura de Carolina Maria de Jesus, uma catadora de MG, residente da favela do Canindé em São Paulo nos joga na cara a reflexão de que ainda hoje seguimos em passos muito lentos, diante de tantas urgências sociais e emocionais de uma sociedade já em colapso. Uma sociedade anêmica de perspectiva.
Ler o quarto de despejo é como revisitar um passado que eu não gosto e gostaria de apagar da memória, mas que ainda é real. Afinal eu só preciso abrir a janela da sala para ver várias Carolinas, mesmo que essas ainda não saibam ler ou muito menos entendem sobre política, sobre quem governa seu país e o momento que estamos prestes a vivenciar.
1950 ainda está vivo.
Enquanto olho pela janela e visualizo o outro lado do meu quintal, fecho o livro e me viro para finalmente descansar após um longo dia, eu me pergunto:
“Qual é a perspectiva de vida?”
A minha com certeza não é o quarto de despejo.
Sigo, mesmo tantas vezes sem perspectiva palpável, firme na convicção de que a mudança está uma linha à frente dos nossos olhos, destruindo todos os medos que um dia nos mantiveram inertes às mudanças.