Comecei o dia contemplando a cidade do alto. De uma janela de Santa Teresa, ao alcance de um só olhar, eu observava o aeroporto e a baia de Guanabara, as árvores do Passeio Público, o fim da Rio Branco; no extremo oposto, a Central do Brasil, o Morro da Providência, o Campo de Santana por uma brecha na fronde de uma árvore, o Theatro Municipal, por outra, os Arcos da Lapa. O céu claro, poucas nuvens. Vi um avião aterrissar e outro decolar. Vi um helicóptero verde perder-se no horizonte. Outro helicóptero permanecia fixo por um tempo, como um beija-flor.
Quando desci, recebi mensagens pelo WhatsApp sobre tumultos durante o protesto dos servidores na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Consultei o relógio, consultei os colegas, prometi me atrasar pouco e me dirigi para lá, caminhando apressado, ansioso para testemunhar mais uma manifestação nestes nossos tempos ora insurgentes, ora apáticos. Tudo parecia dominado pela normalidade cotidiana. Da Glória a Cinelândia, não vi um indicio de distúrbio, um rosto alterado, nada. Em frente à Biblioteca Nacional, um grupo de aproximadamente 50 pessoas, professores do Colégio Pedro II, estavam reunidos para protestar, mas não tiravam dos trilhos do VLT a velha rotina cinelândica.
Quando alcancei a Avenida Presidente Antônio Carlos é que a realidade se alterou. Tendo a Alerj como centro, a muvuca se espraiava, chegando quase ao Fórum e avançando até a Praça XV. No meio da multidão, a carcaça metálica inconfundível do Caveirão estava bem diante da Alerj, cercado de gente.
Já cheguei com celular pronto para filmar. A multidão entoava um “Fora, Pezão!” (vieram-me ecos de um “Fora, Cabral!” perdido no ano de 2013 e que resultou, pasmem, na eleição de Pezão…) e fui caminhando e registrando. Cheguei perto do Caveirão, buscando ângulos que aprofundassem o simbolismo daquela presença naquele local. E vi, enquanto o Caveirão manobrava, coisas que eu jamais imaginei que veria.
Alguns homens chutaram a carcaça do Apavorante Veículo. Outro, parado diante do janela do piloto, esticava o dedo médio, com expressão de rancor. Alguns gritavam: “Vergonha! Vergonha!”, acredito que indignados por ver colegas de farda reprimindo seus iguais. Atrás do Caveira de Aço, percebi a presença serena de Tiradentes, com suas mãos unidas e sua barba de vândalo. Busquei mais um ângulo metafórico que enquadrasse o mártir com que sendo levado pelo nosso mais famoso blindado (que assombro esta Alerj deve causar na percepção de Tiradentes… Deve doer como uma nova forca).
O Caveirão manobrou com dificuldade, ouviu mais alguns impropérios, tomou mais uns chutes e saiu do meu campo de visão, permitindo-me ver, logo adiante, os cavalos e os cavalheiros das roupas pretas emborrachadas. Lá fui eu, atrás de mais ângulos e mais simbolismo.
Sob os cavalos, em postas marrom-esverdeadas, o simbolismo ululante. Difícil foi encontrar um angulo que unisse, em só quadro, a Alerj e aqueles montes de bosta equina. Sob a viseira acrílica, percebi um olhar perdido e melancólico por parte do parrudo cavalo castanho. Pobre cavalo, cheirando gás de pimenta, provavelmente com a ração reduzida, exposto a fogos e buzinas ensurdecedoras. Só queria te consolar, cavalo-soldado, ressaltando que somos todos pobres animais…
Um homem discursa. Percebo porque a multidão diante dele, e ele mesmo, fazem o clássico grito de guerra “Uh-uh-uh-uh-uh-uh-uh”. Ele dá os informes. Houve uma reunião e garantiram que não votam nada sem falar com o servidor. A galera vibra. O homem se inflama: “Semana que vem, a gente tem que lotar isso aqui! E não é apenas todo mundo que está aqui voltar! Não! A gente tem é que dobrar o número de gente! Uh-uh-uh-uh-uh-uh-uh!”. Geral vibra, frisson total.
Ele diz quem é, que cargo ocupa na corporação, que foi preso, que a Justiça mandou soltar e que ele está ali pra lutar até o fim. “E se tiver alguém da imprensa aqui, eu quero deixar uma coisa muito clara”, seguiu ele, bom de retórica, “ninguém aqui hoje depredou patrimônio público”. Fez uma pausa… E completou com a voz mais estridente e comovida: “porque grade não é patrimônio público! Uh-uh-uh-uh-uh-uh-uh!”. Euforia, mãos para o alto, buzinas, palmas!
Fiquei mais tempo por ali, fotografando, observando cenas insólitas, tendo diversos insights sociológicos, antropológicos, psicológicos etc. Depois me dei conta do horário e precisei correr para o compromisso de trabalho. Peguei um táxi perto do Municipal para ir até a Glória. O piloto falou que o trânsito estava ruim. Duvidei: “Há pouco, passei a pé por ali”. “Mas tem um ônibus em chamas”, disse o motorista, e logo o trânsito parou e a fumaça foi tomando conta da rua. Paguei e já desci com câmera na mão, vislumbrando oportunidades com esta nova profissão de fotojornalista.
Nesta cidade onde um ônibus em chamas é tão carregado de significados, este era apenas um ônibus acidentalmente em chamas, segundo me disseram no local, nada a ver com manifestações ou distúrbios. Apenas um vazamento de combustível.
Polícia brigando com polícia, Caveirão agredido por soldados, ônibus incendiando-se sozinhos… Que dia! À noite, pelo mesmo WhatsApp, relatos de guerra na Cidade Alta. Áudios tenebrosos, tipo-Síria, mas tipo-aqui-mesmo também; famílias agoniadas em meio a tiroteios incessantes. Comecei o dia contemplando a cidade do alto. Terminei o dia vislumbrando o terror na Cidade Alta.
Que dia… 16 de novembro de 2016… O dia é uma lasca da vida, e a vida que temos é essa aí, sobre esta cidade, nesta conjuntura.
Dias melhores virão… Se formos capazes de convidá-los.