Rayane Crisante Souza Santos, 31 anos, mora na favela do Dendê, Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Ela gasta em média por dia R$ 8,20 de transporte para ir trabalhar, o que segundo ela, interfere em sua renda, pois como é autônoma, o valor integral sai do seu bolso e chega a fazer falta. “Hoje um cano estourou na minha casa, eu tinha 50 reais, porque eu desinteirei, vou ter que ir andando para o trabalho que leva mais de uma hora de caminhada. Para a igreja vou a pé, se não gastaria mais de 30 reais por semana só para isso”, comenta.
Ir a pé para os locais que precisa se deslocar quando não tem dinheiro, e priorizar quando e para onde vai usar o transporte, é o mesmo que faz Fabiana Santos Oliveira, 41 anos, educadora, moradora da Favela Vila Nossa Senhora Aparecida Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte.“Tudo que você precisa está no centro da cidade, você tem que gastar com passagem que tem um preço abusivo e acaba que quando você vai fazer as contas, pesa sim no bolso”.
De acordo com dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, a tarifa de ônibus mais cara é a de Porto Alegre, R$4,55, a mais barata de Recife, R$3,45, e a média nacional de R$3,99. Com base no valor, um trabalhador que faz o trajeto de ida e volta por 22 dias gastaria por mês R$175,56. Isso representa quase 17% de um salário mínimo, que hoje está em R$1.045.
Para Rafael Calabria,coordenador de mobilidade urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), pessoas de baixa renda são as mais impactadas pelo preço das tarifas porque são as que mais utilizam o transporte público. Ele explica que no Brasil o financiamento do transporte coletivo é praticamente todo custeado pelo usuário pagante através do valor da tarifa. Para sustentar seu funcionamento, a taxa fica mais cara, o que torna o sistema excludente, porque quem não tem o dinheiro para pagar, não usa. A consequência é a perda de passageiros, o que faz com que a tarifa aumente novamente, um ciclo vicioso difícil de reverter, afirma o especialista.
Quando as prefeituras subsidiam parte do financiamento, como é o caso da gratuidade e da integração, segundo ele, pesa da mesma forma, uma vez que o dinheiro repassado às empresas é feito considerando o número de passageiros que passam pela catraca.“É um modelo que estimula que os empresários cumpram o mínimo das regras exigidas pela prefeitura, lotando os ônibus e fazendo menos partidas para economizar, atrasando assim as viagens. Estimula a lucratividade, desestimula a qualidade”.
Para Rayane e Fabiana a qualidade do transporte e do serviço prestado está aquém do valor pago nas tarifas. Elas afirmam que algumas vezes carros por aplicativos acabam sendo mais vantajosos pois a diferença de preço é pouca e chega a compensar quando estão em mais pessoas.
Rafael explica que é importante usar os meios formais de denúncia do transporte público, como prefeitura, Procon, defensoria e ministério público, que, em contrapartida, também precisam viabilizar e fortalecer conselhos de participação e fiscalização da população. Ele estimula também o uso de canais informais e sugere o guia do usuário do transporte público disponível no site do Idec, para mais informações sobre como divulgar problemas diários enfrentados no transporte.
Modificar contratos de licitações e criar fundo de transporte são estratégias para melhorar a qualidade e o preço do transporte, esclarece especialista
Um estudo do Idec, o MoveDados, analisou contratos de ônibus de 12 capitais do Brasil para entender porque o serviço ainda é ruim e possui uma tarifa cara. Além dos fatores já citados pelo especialista, foi observada a longa duração dos contratos; falta de competitividade; e pouca transparência de dados como número de passageiros transportados, cumprimento das viagens e localização dos ônibus em tempo real. Esses fatores dificultam melhorias no sistema, segundo o estudo.
De acordo com Rafael, diante desse cenário, o primeiro ponto é implantar novas metodologias de licitação, como dividir contratos em duas partes ou fazer contratos menores, com isso você tem mais empresas prestando serviços diferentes, criando concorrência e barateando os custos. Outra questão seria desmistificar a ideia da estatização, tendo em vista que o transporte é um serviço essencial de direito social, e a empresa pública, poderia ser uma tentativa para reduzir o poder das empresas e fiscalizar melhor, esclarece.
O segundo ponto, explica o especialista, diz respeito a busca por outras fontes de financiamento, como propagandas nos veículos; uso de recursos do IPVA, IPTU e zona azul; tributar estacionamento e carro particular; obter auxilio de recursos federais como combustível da Petrobrás; e se inspirar em modelos internacionais como o da França, onde o valor do transporte pago por empresas não vai para o funcionário e sim para um fundo que ajuda a baratear a tarifa como um todo.
Para Rafael, com essas verbas, a prefeitura poderia criar no Brasil um fundo de transporte com recursos estáveis e transparentes para garantir um custeio que não recaia apenas no bolso dos usuários. “Toda a cidade se beneficia do transporte quando ele funciona bem, mesmo quem usa carro, que usufrui de vias com menor congestionamento, logo, é justo que todos contribuam. Porém, por ser um tema polêmico requer debate e convencimento social”, conclui.
Tarifa zero, utopia ou realidade?
Uma análise dos planos de governos dos candidatos às prefeituras feita pelo Idec, mostrou que em 2020 todas as capitais brasileiras tiveram candidatos que prometeram redução de tarifa, e parte deles chegaram a citar formas para que isso ocorresse, como mostra na imagem 2. Para o especialista do Idec, independente do resultado das eleições, esses dados demonstram um avanço na discussão do tema.
Para Rafael Calabria, coordenador de mobilidade urbana do Idec,independente do resultado das eleições, esses dados demonstram um avanço na discussão do tema. Com relação a tarifa zero, ele acredita que tanto é possível, quanto urgente, e já vem sendo implantado em diversas cidades do Brasil e do mundo.
Ao visitar parte desses locais, ele garante que a gratuidade permite o acesso pleno das pessoas ao transporte, como é o caso de Agudos, São Paulo, onde presenciou crianças utilizando o coletivo para fazer excursão escolar, e Maricá, no Rio de Janeiro, na qual ouviu relato de que pessoas conseguiram ir à praia pela primeira vez. “É uma questão de organizar os fundos de transporte, ir testando, e ver qual o mais eficiente. Ainda estamos longe dessa etapa, mas tarifa zero, passe livre total, não é uma utopia. Quem sabe no futuro se torne tão convencional quanto o sistema de saúde que é gratuito“, conclui.
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