Toda tradição de fé ou religião, ou ainda espiritualidade, como se diz hoje. Falo sobre aquele desejo inato e inerente por transcendência, que leva pessoas sonharem com a transformação da realidade, apostarem a vida num mundo novo ou então renovado em ancestralidade mais bonita. Esse devaneio real de superação está presente desde igrejinhas resistentes aqui nos morros do Rio. Passa por mulheres rezando às margens do Ganges há séculos até hoje, por liturgias ortodoxas orientais lindas e cheias de mistério e significados, por silêncio vipassana e jejuns de Gautama sob a árvore e milhões de meditadores. Por poesia, choro e sorrisos… São tantas referências de fé e esperança.
O que existe em comum e extraordinário é que todas essas fés cruzarem milênios em nosso imaginário. Seja em África dos Orixás ou na antiga Pérsia, defender o bem e buscar o amor sempre estiveram presentes. E continuarão como pulsão essencial até o final dos tempos. Marx escreveu que a religião é ópio do povo e não sem razão. A religião que perde a dinâmica de movimento e vai se engessando e se acomodando, prostituindo-se aos poderes temporais perde sua essência profunda. Nem vou discutir o sentido positivo do ópio aqui… Só digo que sou daqueles que, se não consigo tirar um morador de rua das ruas, não me engano que irá usar meus cinco reais pra comer.
A gente se realiza na vida e faz diferença quando encaixamos nosso eixo narrativo pessoal à realidade que pisamos, na medida que construímos algo significativo no mundo. Comigo isso aconteceu à partir de 1994, ano que conheci André Fernandes, fundador da Agência de Notícias das Favelas. Era um missionário apaixonado por fazer o bem e viver no amor. Passei um mês daquele ano no Santa Marta; limpando feridas, pinçando bernes no ambulatório, carregando tijolos morro acima, querendo tirar meninos com fuzil morro abaixo, encontrando linguagens novas de viver no amor e outras peripécias… Em 96 voltei pra outras missões, sonhos e projetos. Mas ali em maio de 94 foi uma esquina na minha vida que me sustenta até hoje, André derramou sua visão para mim.
Dentre as religiões a fé cristã possui sua face singular. Resumindo, religião é termo que vem do latim religare. Nossa busca por uma religação, interpretação ou reconexão com a transcendência que falei no início. Nos Evangelhos, um movimento inverso e inesperado acontece: é Deus quem vira gente contraditória e frágil. Nasce numa favela lá no subúrbio da Palestina e toma iniciativa em reconstruir esse vínculo essencial. Aponta que nossas geografias mais pobres são sagradas, estão sob esse movimento poético e prático de Deus em tocar nossa realidade.
Queremos ver Cristo nascendo aqui nos morros e todas outras periferias, crianças e velhos, mulheres e homens que acreditam no milagre do amor.