No último domingo, narramos as batalhas de rima no Rio Grande do Norte, na primeira parte desta reportagem. Começo esta segunda parte da reportagem sobre o rap no Rio Grande do Norte contando do encontro com o rimador Playmobil. Fui obrigado a questionar o porquê do apelido, pois, como expliquei a ele, a expectativa que se cria com o nome é de alguém que possui uma cabeça mais impressionante que aquela frustrante normalidade que ele carrega sobre o pescoço.
Playmobil conta, se divertindo, que o apelido vem do tempo em que jogava futebol: “eu corria de um jeito estranho, e o pessoal dizia que parecia um boneco Playmobil. Dos meus apelidos, era o melhor. E no hip hop, a gente precisa de um nome de impacto”.
Aproveitei que naquele dia Playmobil, também conhecido como Gabriel Teodósio, não duelaria, e tive com ele uma verdadeira aula sobre o movimento. “Gosto de duelar descansado e concentrado, para dar o meu melhor. Valorizo a oportunidade”, ele explica.
Ele me conta que o rap nordestino enfrentou resistência no sul do país quando começou a despontar, muito em função de um certo preconceito que ainda confere ao Nordeste um estereótipo rural.
Entretanto, Playmobil não vê nenhuma oposição entre a tradição cultural nordestina e o hip hop, um movimento eminentemente urbano. Sua própria trajetória até o encontro com o gênero ilustra bem isso.
Rap nordestino é inevitável parente do repente
A família de Playmobil tem fartura de artistas, e seu primeiro contato com os versos improvisados se deu através da cantoria de viola. Ele me mostra uma pasta de vídeos que organiza para estudos musicais e exibe uma entrevista com os famosos repentistas Caju e Castanha.
Na entrevista, a dupla opina que “essa coisa de funk, de rap, isso aí a gente já fazia, é repente”. Playmobil concorda e acrescenta: “o que fazemos é um coco de embolada com autotune”.
Ele avalia que a urbanização crescente da região deu vazão ao movimento hip hop, impondo novos temas sociais. Playmobil considera natural e positivo que o movimento se alimente da tradição de repentistas para produzir novas formas. Gabriel Teodósio é aluno do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e é dado a essas considerações.
Inclusive, ele conta, “nosso estado tem se destacado na cena com um estilo próprio, o bate-cabeça”, uma variante do rap que tem ganho o respeito dos confrades de outros estados.
Características do rap potiguar
O rap é rico em estilos, me explica Playmobil , e cita uma porção de termos até então desconhecidos por mim (trap, boom bap e outras dezenas). O bate-cabeça potiguar se caracteriza por acentuar certos aspectos, como o uso frequentes de pausas, uso de palavras que se assemelham na grafia e na pronúncia, mas têm sentidos diferentes, além de uma batida mais forte.
Playmobil apresenta no celular alguns expoentes do estilo: Slam, Hagar, Kelb, ARTR, além de citar o Poeta, um dos pioneiros do movimento no estado. Também chama a atenção para o uso de expressões regionais que vão se harmonizando ao ritmo do rap.
“São as expressões e o flow que dão personalidade ao bate-cabeça.” Flow, pelo que entendi, é a cadência, a levada de cada variedade.
“Que eu me organizando posso desorganizar”
O hip hop potiguar tem se organizado. O próprio Playmobil passou, há alguns anos, a compor um grupo chamado Frente Fria, que se apresenta em diversos espaços culturais. Ele começou na Batalha do Ded, em Candelária, em 2016. Logo passou a frequentar e vencer diversas batalhas, sendo convidado para compor o Frente Fria.
O grupo começou com LW, Kiko (que sairia mais tarde), PV (Karma, hoje na Austrália onde segue cantando rap), Traive e ele. Depois se juntaram JV, Théo e Alb. Os vídeos do grupo no Youtube são bem produzidos e acumulam milhares de visualizações. Eles colecionam inúmeras apresentações, já abriram shows na Rua Chile e dizem que é só o começo.
Playmobil cita como exemplo do progresso do movimento local o surgimento de produtoras especializadas no gênero, das quais ele me apresenta a KaliYuga Mob, que produz os clipes de Slam Sam, rapper que ganha cada vez mais prestígios na cena musical brasileira.
“O underground é a rataria. E o bate-cabeça potiguar é ainda mais agressivo e seco.” Sugiro que essa característica de estilo tenha a ver com a crescente angústia dos jovens de nossas grandes cidades. A música lenta e romântica que toca nos bares de Petrópolis para apreciação dos jovens de classe média não expressa mais o sentimento dessa nova geração, que nasceu e se socializou numa sociedade ultrarrápida, extremamente contraditória.
Toda uma nova geração de artistas da MPB canta em voz quase infantil, bucólica, como se fossem desnutridos por negação voluntária a se alimentar. Já no movimento hip hop sentimos a fome e o desejo de comer. Ele concorda. “Vivemos oprimidos, muitos têm pouca esperança no futuro. Nossa música reflete isso.”
Por um rap com a cara e o sotaque do Nordeste
O rap potiguar ainda luta por reconhecimento, mas Playmobil está otimista. “Eu entendo essa resistência, leva um tempo para quebrar estigmas, superar certas barreiras”. Ele demonstra ser um pesquisador dedicado do gênero e de muitos outros.
Busca inspiração e referências em diversos artistas e se esforça por incorporar novidades ao seu estilo. Exibe um vídeo que julga ter sido um divisor de águas para o rap nordestino, Sulicídio, um ataque à muralha erguida no Sul do país contra a produção hip hop do Nordeste.
O movimento vem ganhando aliados, a exemplo da União Estadual dos Estudantes – (UEE-RN), que apoia as batalhas através do Circuito Universitário de Intervenção Artística (CUIA).
Yara Costa, presidente da UEE, esteve nas batalhas da Cívica e do Coliseu. A estudante de Gestão de Políticas Públicas da UFRN é uma entusiasta das batalhas e diz ver nos eventos um canal para a expressão de toda uma parcela da juventude que é excluída dos espaços tradicionais.
Playmobil ressalta ainda que para os próximos meses está prevista a seletiva PB, PE e RN que escolherá o representante da região na batalha nacional de hip hop, que acontece em Belo Horizonte. “Se o RN conseguir enviar um representante, será outro marco para nossa cultura”, avalia.
De volta à batalha da Cívica
Na quarta batalha da noite na Praça Cívica – as três anteriores foram narradas na primeira parte desta reportagem, publicada ontem pela ANF – o Mc anuncia o duelo de Scobar, a Alice.
Diferente do que eu esperava, vejo um duelo sem cavalheirismo: um garoto mirrado com o boné atravessado na cabeça vai socando Scobar desde a primeira estrofe; tudo literariamente, claro.
Scobar também não se faz de madame: manda algumas rimas fortes e provocativas na cara do oponente. Após as primeiras trocas de golpes, contudo, Scobar parece abandonar a luta e é eliminada.
Houve ainda um momento nas batalhas em que a galera foi ao delírio, pois parecia haver algum vascaíno em cena e, aparentemente, isso representava uma desvantagem competitiva.
Ter um ritmo mais pro funk que pro rap também foi versado como algo negativo, embora não tenha impedido o funkeiro denunciado de vencer sua batalha, ao contrário do que ocorreu com o vascaíno.
Poeta, um dos pioneiros do movimento no estado, é referencial para muitos da nova geração do rap potiguar. Jovens que, como Alice, buscam formas de expressão com as quais tenham identidade.
Finais da batalha da Cívica: só os fortes sobrevivem
Nas semifinais, Fênix volta para o ringue e começa com um papo reto: “tu não manda rima rara / e a mim não se compara”. Mas o oponente, TK, parece conhecer algum fato obscuro do passado de Fênix, algo sobre tirar uma foto no capô de um fusca. Após dois rounds onde foi preciso que levantassem a mão para contar os votos, TK derrota Fênix por 2 a 0.
A grande final é entre TK e ICS. Alguém arrumou um celular potente e temos pela frente um confronto em alto nível. Após uma controvérsia teórica sobre criminalidade, TK vence o 1º round conquistando o aplauso na estrofe final: “A sociedade diz que bandido bom é bandido morto / Eu falo: bandido bom é bandido ressocializado”.
No 2º round, ICS parte para a destruição, acusando o adversário de ser “MST do Greenville” (condomínio de luxo da cidade, como tantos outros com nomezinho em inglês) e denunciando aquele papo furado de socialismo, “aqui não é a China”.
Mas a noite é mesmo de TK. O “branquelo” garoto destroça em seus versos de encerramento, porque aqui não é China, ele diz; eles se inspiram no passado, mas “aqui é contemporâneo, fazendo nova tradição”.
Quando acaba, a batalha está apenas começando
Encerrada a Batalha da Cívica, a galera ainda fica de papo por ali, dividida em grupos. Fênix me diz que, se conseguir a passagem, aparece no dia seguinte na Batalha da Cívica. Porém, não o encontrei lá, entre o público. Pergunto a Scobar se alguma timidez a fez desistir da batalha. Ela nega, diz que vergonha grande passou no primeiro dia de aula do ano.
A professora perguntou a cada aluno o que costumavam fazer, o que desejavam para o futuro, e ela falou do rap. Então a professora a incitou a improvisar alguns versos. Ela mandou algumas rimas sobre como era estar ali, em sala de aula novamente. Diz que passou o maior aperto.
TK está sendo congratulado por amigos. Nesta noite, ele venceu. Mas para ele, Scobar, Fênix, Kadu, Sabota, Playmobil e tantos outros, a batalha está apenas começando.
Neste ano de 2023, depois da incursão pelo mundo das batalhas de hip hop, não consegui reencontrar Scobar, Fênix e os resto daquela turma. O Frente Fria segue fazendo sucesso. Alguns de nossos personagens se mudaram do estado e ainda frequentam batalhas, em seus novos lares.
Há uma safra nova, sempre há. Pelas rimas e postagens nas redes sociais, tenho a impressão de que seus sonhos são os mesmos que os daqueles que conheci numa semana de julho de 2021.
Sinto uma certa nostalgia e me apego à esperança de que os antigos gladiadores do hip hop potiguar tenham encontrado seu lugar num mundo hostil, que parece não ter mais espaço para os jovens.
Esta reportagem foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.
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