Uma nova experiência é sempre algo que mexe com nossa mente. Ninguém segue ileso ao dar um passo rumo ao desconhecido. Porém, se são os desafios – e as utopias – que nos movem, tornar-se colunista da ANF às quintas-feiras não é só um compromisso, é também um combustível rumo à ocupação de novos espaços.
E é justamente sobre ocupação de espaços que gostaria de abordar nesse primeiro texto, fazendo um paralelo com minha vivência no mundo jurídico, enquanto advogado, e chegando às conseqüências dessa ausência negra nos locais de poder.
O Judiciário reflete, com precisão, a segregação racial e social do Brasil. Nele, é comum haver contato apenas com funcionários brancos a serviço desse poder estatal. Como exemplo, levando-se em conta apenas o cargo de juiz, os negros representam 15% das pessoas que os ocupam, ainda que sejamos 53% da população nacional. Não tenho números oficiais sobre os demais trabalhadores, mas, na minha vivência de oito anos percorrendo o Judiciário da capital, interior do Rio e Distrito Federal, posso afirmar que o número de servidores negros dificilmente ultrapasse a casa dos 25%. Posso contar em uma mão a quantidade de vezes em que eu não era o único negro na sala de audiência, excluindo-se o réu e o policial militar: foram quatro vezes.
Isso tudo gera no negro, externa ou internamente, um total sentimento de não pertencimento àquele local, ainda que o acesso à justiça seja direito constitucional de todos. Ao entrar em uma repartição e não se ver representado, o negro se distancia desses locais fundamentais para a gestão da sociedade. Eu me recordo do dia em que, no corredor das varas criminais do principal fórum da cidade do Rio, vi uma senhora negra de vestes humildes, que, ao tomar um copo d’água, o deixou entornar um pouco no chão, sendo logo tomada pela sensação de “estar em erro” – saiu em desespero, em busca de um pano de chão para secar a água derramada. Naquele momento, eu me questionei: seria real imaginar essa reação em uma pessoa branca, de classe média, em um fórum da Zona Sul da cidade? Essa situação é um reflexo do nosso racismo estrutural e do sentimento de que somos estranhos àquele lugar.
Outro problema é que essa falta de representatividade do povo negro dentro do Judiciário, responsável por gerir, entre outras coisas, a relação Estado-Povo enquanto instrumento de controle da atuação estatal, direciona a política criminal em execução no Brasil. Isso torna o Judiciário uma máquina de moer carne negra.
Em resumo, tudo está interligado e se retroalimenta. O negro não possui acesso à educação, oportunidades e, consequentemente, possibilidades de ocupar cargos de relevância no contexto social. O negro não se sente parte do grupo que gere a sociedade pois não se vê lá – isso, quando não se enxerga sequer enquanto parte da própria sociedade. Ao negro é dado o lugar de quase invisibilidade social, sendo retirado dele educação, direitos, oportunidades e a chance de sonhar. Isso empurra a população negra para uma “marginalidade social”, seja para ter seu sustento básico ou para participar ativamente da gestão da vida coletiva.
Enfim, volto a dialogar com o início desse texto, com o que representa estar aqui, às quintas, falando com vocês. Essa ocupação de espaço que gera representatividade, mais do que importante, é necessária para que possamos tirar a população negra da invisibilidade social que nos foi imposta por 388 anos de escravidão e 517 anos de apartheid social. Só precisamos que o primeiro negro arrombe a porta para que todos os outros sigam o seu rastro, construindo cada qual o seu caminho.