Autora trans ergue os panos do sexo comercializado em calçadas escuras
O primeiro livro de Amara Moira, sobre suas experiências de prostituição nas ruas, explicita uma das características mais importantes da literatura, o sentido de revelação.
O título da obra – E se eu fosse puta? – sugere respostas, e encontramos várias, desde como ela foi descobrindo as agruras (mais) e delícias (menos) do sexo, digamos, mercenário, até os tristes personagens que procuram a autora-narradora para rápidos momentos de prazer apressado, culpado, mal pago.
Os clientes se revelam muito tristes, pessoas frustradas que buscam (escondidas) um alívio para desejos enrustidos, confessados somente para a trans que contratam, sem saberem que ela nos contará tudo, com riqueza de detalhes.
“Quanto vocês saberiam da vida por trás dos panos da profissão mais malfalada do mundo não fosse por mim? Venho sendo entrevistada em tudo quanto é canto, convidada pra dar palestra em universidade, dividir mesa com vereador, capa de jornal importante, revista, participar de documentário, e não é à toa… quem toca esse discurso assim, na caruda, doa a quem doer, são poucas no Brasil, loucas como eu”.
As novidades vão se transformando em consciência da exploração, mudando “radicalmente a imagem que eu fazia da prostituição”. Então passamos a ler sobre a violência, a solidão, a marginalidade do meretrício nas ruas.
Mas as revelações, que não têm um sentido óbvio de denúncia social, são também sobre desejo, descobertas, contém ironia e humor – este, em geral, está entre parênteses, dos quais a autora usa e abusa.
“O começo, ah, o começo. Primeiro dia na rua, carros e carros passando, eu toda sem jeito buscando o olhar do cliente, tentando atiçá-los com uma palavra, um gesto, dedo nos lábios, piscadinha (que, no meu caso, era quase careta), eu transpirando desengonçamento…”.
A ironia consigo mesma quebra expectativas, humaniza o relato. Há ainda capítulos de teor filosófico, nos quais a narradora reflete sobre a condição trans, passagens de puro ensinamento – para quem se permite – sobre o quanto ainda precisamos compreender a vida, o mundo, o universo, a galáxia trans, como em “A travesti e o amor que existe pra nós”. Procure saber o que é “xuca”, por exemplo.
Esse é outro sentido fundamental da obra, o pedagógico. Se fôssemos uma sociedade evoluída, além de rasas discussões sobre “escola sem partido” ou “ideologia de gênero”, estaríamos lendo Amara Moira nas escolas, até mesmo para o ensino da escrita, pois o livro é tecnicamente impecável, de leitura fluente.
A autora, doutora em Literatura pela Universidade de Campinas (Unicamp), escreve histórias realistas que, dependendo do tipo de leitor ou leitura, podem nos revelar, e revelando, virar combustível para explodir a raiva, aquela que aparece nas relações em que o cliente é todo negação de seus desejos.
E não estou me referindo somente a possíveis fregueses que possam se reconhecer retratados por Amara Moira, mas aos seres que sequer tiveram coragem de vivenciar seus desejos afobados em uma esquina escura.
Se for esse o seu caso, tome cuidado: como as moiras da mitologia grega, notícias ruins sobre seu destino podem estar vindo por aí.
“Ouça no Spotify o podcast Literatura de peri, periferia, com trecho da obra E se eu fosse puta?”
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