Ao contrário do que se possa pensar, nossa cidade maravilhosa não está nem nunca esteve (des)partida. Tampouco está se integrando. Vamos entender por que.
Tudo começou com aquela velha história da maquiagem. E ao contrário do que se possa pensar, se maquiar é bom. Toda mulher que se maquia quer simplesmente ficar mais bonita. Simbolicamente essa ação faz parte de um processo de autovalorização cuja provável consequência termina no ganho de também prováveis benefícios, afetivos, emocionais e/ou materiais. Nesse momento o Estado começa a jogar gotas de perfume sobre as nossas favelas. Era preciso preparar o território, visto que “há em curso uma substituição inevitável da população típica de favela por outra, mais rica, até de fora do Rio e do Brasil”, de acordo com o jornal O Globo, ipsis literis, do dia 19 de Maio. Essa tese reitera nosso posicionamento publicado dia 11 de Maio pela Agência de Notícias de Favelas, onde apontamos que o grande Rio deixa de ser um dos principais polos de atração das populações da região norte e nordeste e passa a ser polo de atração de muitos grupos da classe média internacional e da classe média das cidades do interior do estado do Rio de Janeiro e de outros estados. E foi assim que começou a triste história que viemos aqui contar sobre essa tal remoção branca, menina dos olhos do prefeito, muito bem apessoada, mas cheia de más intenções.
Na maioria das favelas, hoje diretamente sob o controle do Estado através da política de “pacificação” militarizada, vulgo UPP’s, os favelados moradores tradicionais começam a ser substituídos por novos moradores. Contrapondo as tradicionais remoções de favelas, eles não são forçados a saírem de suas casas pelo governo, mas são expulsos pela própria liberdade do sistema capitalista neoliberal, a “mão invisível” das leis do mercado financeiro. Se isto é um fato, o que vamos ressaltar nesse artigo é o contraponto a este fato.
De fato, existe nas favelas uma resistência que fortalece as identidades sociais tradicionais e ao mesmo tempo empodera muitos grupos de moradores tradicionais que resistem ao movimento de expulsão branca promovida pela liberdade do mercado. Vemos surgir aqui outro tipo de revolução social: a revolução da resistência. Na seleção natural de Darwin sobreviverão nas favelas os novos empreendedores sociais. Pedro Henrique de Cristo, mestre em Design e Políticas Públicas na Universidade de Harvard, morador do Vidigal há pouco mais de um ano, segundo o jornal O Globo, conta que “um exemplo do que pode acontecer é a partida do Seu José. Ele tinha uma barraca de tapioca ao lado do hotel Pellegrino e vendeu. Se houvesse apoio ao empreendedorismo local, ele saberia que investir no negócio seria mais rentável”.
Ao contrário do que se possa pensar, centenas de moradores das favelas, diferente do Seu José, acolhem o processo de intervenção do Estado militarizado e, na contra mão deste processo, buscam suas reinvenções sociais engajando-se em projetos que os capacitam tecnicamente em atividades nas quais eles já tinham alguma expertise, como gastronomia, confecção, artesanato, atividades artísticas, musicais, etc. As áreas hoje cobiçadas pelos segmentos mais abastados da sociedade e que, através da bem estruturada política pacificadora militar, que impõe padrões éticos, econômicos e civilizatórios excludentes para os favelados tradicionais, encontra em centenas de pessoas de vários grupos uma apropriação resignificada da presença do Estado e da sociedade civil abastada nas favelas através de projetos vinculados ao Sesi, ao Senac, ao Senai, ao Sebrae, às Secretárias de Cultura e Habitação e a muitas Ongs e Igrejas, que atuam de maneira contundente e eficaz, transformando competências técnicas operacionais já existentes em oportunidades de negócios e negócios.
Exemplo disso é o Museu da Maré e sua oficina de cerâmicas, com uma produção artesanal de altíssimo nível orientada pelo Sebrae e direcionada para o mercado exportador pela Ação Comunitária do Brasil. Também na Maré, temos a organização de uma cooperativa de mulheres que produzem bonecas de pano que servem como brinquedos lúdicos para crianças e também como objetos de decoração. Essas mulheres que já tinham uma capacidade técnica produtiva receberam da ONG supracitada com o apoio do Sebrae, elementos de capacitação e expertise que as transformaram em um poderoso núcleo e rede sociotécnica de produtividade. Mas ao contrário do que se possa pensar, essa não é simplesmente mais uma “boa ação” em prol da melhoria da qualidade de vida dos favelados – mas é, sim!, exemplos do triunfo do capitalismo. A força motriz que faz rodar as engrenagens desse sistema que exclui é a mesma força criadora da revolução da resistência que se dá na medida em que os excluídos internalizam as próprias regras do sistema que os exclui e as conjugam dentro de suas próprias comunidades.
Também é digno de nota ressaltar que em 2011 nossos dirigentes declararam que o Rio de Janeiro passava a ter menos 44 favelas, de acordo com o Instituto Pereira Passos. A mudança foi feita a partir de dados fornecidos pelo IPP e a Secretaria Municipal de Habitação (SMH). O critério básico adotado para a troca no nome foi a quantidade de serviços urbanos disponíveis nestes locais – que seria similar àquela fornecida em outros bairros da cidades. Essas 44 ex-favelas passaram a ser chamadas de “comunidades urbanizadas” e aí nasceu a discussão favela versus comunidade. Segundo o historiador Marcos Alvito, “por mais que o Estado implemente serviços na favela, ela continuará a ser diferente. Melhor do que tentar tapar o sol com a peneira, seria positivar o termo favela, mostrando a história de luta de seus moradores, que é uma história de superação. Daqui há 100 ou 200 anos eu acharia interessante que estes espaços continuassem a ser chamados de favelas. O nome carrega uma história”. Fica a dica!i
Mas essa história toda fica bonita quando aprendemos que favela é uma planta – Cnidoscolus quercifolius, popularmente chamada de favela – típica da caatinga e extremamente resistente à seca. A cidadela de Canudos, construída durante a Guerra de Canudos (1897), nasceu no sertão da Bahia acolhida por esse tipo de vegetação. Os soldados, ao retornarem ao Rio de Janeiro, deixaram de receber seu soldo e sem condições financeiras instalaram-se provisoriamente no Morro da Providência, fazendo companhia a outros desabrigados, muitos deles em nome da liberdade do fim da escravatura. A partir deste episódio, os morros recém-habitados, construídos à imagem e semelhança dos barracos da Guerra de Canudos cobertos pela vegetação de favela, ficaram conhecidos como favelas, fazendo referência à “favela original”. Aí, em 1930, surge o Plano Agache, a primeira proposta de intervenção urbanística da cidade do Rio de Janeiro. De acordo com o site planourbano.rio.rj.gov.br, esse plano introduziu no cenário nacional algumas questões típicas da cidade industrial, tais como o planejamento do transporte de massas e o abastecimento de águas, a habitação operária e o crescimento das favelas. Mas então o que o nosso governo fez de 1930 até agora? No Vidigal, a favela mais hype do Rio de Janeiro e que está bombando na mídia, o lixo nem sequer é recolhido diretamente pela Comlurb, segundo dados do Instituto Pereira Passos divulgado no mesmo O Globo do dia 19/05. Marília Pastuk, socióloga e superintendente da Ação Comunitária do Brasil no Rio de Janeiro, sugere que uma possível solução para problemas em territórios populares seria a criação de políticas públicas estruturadas. “Devemos pensar em uma política de saúde para o território, uma política de habitação, e não em ações pontuais superpostas e desarticuladas. Precisamos de articulação entre instituições e dessas com a comunidade”. Ainda sobre cidade partida versus integração, durante o Fórum Nacional que teve como tema “O Brasil de amanhã – a magia do desenvolvimento”, encerrado dia 16/05, Mônica Francisco, moradora do Borel e representante da Redes de Entidades do Borel, ressaltou: “se dizemos que favela é cidade, não temos que reivindicar direitos. Temos que viver direitos. Temos muitos estudiosos e mestres saindo da comunidade da Maré, e de outras favelas, representando os moradores em fóruns importantes. O que falta é ouvir a real necessidade dos líderes das comunidades”.
Acontece que aí, ao jogar o jogo do contente obedecendo às regras do mercado, mudam-se os desejos, os afetos, as necessidades e utilidades de vida. Aqueles que sobrevivem na favela com o título de empreendedores sociais, passam a desejar o mesmo que a classe media: eles querem ascensão social! Nem sempre pelo ponto de vista apenas do consumo e poupança (renda), mas querem ter prestígio, ter o status de serem pessoas vitoriosas. Conquistam patamares de felicidade diferenciada daqueles que não entram no jogo e são expulsos como refugo humano. Eles querem e têm seus filhos na Universidade. Eles compram Tv de plasma ainda que já tenham uma Tv em bom estado de uso. Eles compram carros antes da carteira de motorista.
Mas essa história toda fica bonita quando você conhece a Mônica (nome fictício), amiga nossa, moradora do Jacarezinho, que entrou na Universidade Estadual do Rio de Janeiro através do sistema de cotas e graduou-se em Farmácia. Depois, tornou-se mestre em Bioquímica pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e, pasmem!, hoje faz seu Doutorado em Bioquímica na Alemanha, além de ser professora em uma importante Universidade privada do Rio, onde atualmente está de licença, por motivos de força maior, além do oceano Atlântico. Seu projeto de futuro? Reformar a casa da sua mãe, comprar e reformar a sua própria casa no Jacarezinho e prestar concurso público para uma carreira de prestígio e importância na estrutura do Estado. E, ao contrário do que se possa pensar, seu projeto de carreira não está vinculado às grandes Universidades, mas desenhado em Agências Reguladoras ou outros órgãos que remunerem acima dos docentes universitários.
Mas não vamos ser ingênuos e falar em uma política humanista. É interessante perceber que uma das contradições da voracidade capitalista que quer exterminar com os favelados é a mesma que cria novas lideranças faveladas, com identidades faveladas dançando no ritmo da música dos selvagens capitalistas. Uma música desvinculada do mundo do crime, nas regras do mercado formal capitalista, dominante e hegemônico no Brasil e em particular, de maneira acelerada e acirrada, na região do grande Rio, laboratório do capitalismo financeiro mundializado.
É evidente que essas pessoas ao empoderarem-se como empreendedores tendo um suporte técnico institucional governamental e não governamental bem articulado participam de uma resistência de novo tipo: usam as mesmas armas que estão expulsando centenas de outros moradores pelo endividamento e pela não adequação à voracidade capitalista, fazendo nascer uma nova elite empresarial favelada que não abre mão dos seus valores tradicionais, mas que sabe usar as mesmas regras do opressor e ganhar capital (de sobrevivência e de ascensão social) usando essas regras. E vindo dos céus, ou do inferno, sabe-se lá!, a voz do Estado silenciosamente diz: ou respeita as regras ou vai morar em uma calha de rio em Xerém.
E que ainda assim, sejamos capazes de acreditar em um mundo melhor. Amém!
Por Giovanna Barreto e Paulo Baia
*Os autores são militantes sociais, Sociólogos e professores.
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i Algumas informações foram retiradas do site Observatório de Favelas