Estes dias quentes têm dado lugar a noites resfriadas. Algumas até suavemente gélidas. Já estamos em dezembro, e mesmo naquelas noites tipo-forno, sempre passa uma brisa, um frescor passageiro…. Comentei isso neste domingo, ao visitar uma casa que muito respeito em Sulacap. Ivo Grisalho, mestre e gran senhor dos tambores, estava na roda onde fiz esse comentário casual. Olhou-me surpreso e chamou-me a um canto, onde havia um galo amarrado pelo pé.

“Sabe o que tem resfriado estas noites?”, disse-me ele pausadamente, com a voz mansa. “Desconfia do que tem desafiado o bafo morno deste pré-verão? Imagina o que tem causado isso que você muito bem observou?”. Percebi que eram apenas perguntas retóricas e afinei o foco de meu olhar mais atento no fundo dos seus olhos cor de madeira.

“Há uma massa densa circulando a cidade e alterando os humores do ar”, startou Ivo. Uma pomba voou do chão do quintal ao muro, um trovão distante roncou. O último ônibus sairia em 17 minutos.

– Essa massa, imaterial e potente, foi deslocada de seu local de origem e vaga, desorientada e vingativa, amarga e concentrada, perdida, mas sedenta de posse.

Pisquei os olhos mais do que o comum e minha nuca sofreu uma leve vibração nervosa.

– Essa massa, que já foi tanto riso quanto lágrima, esplendor e depressão, entusiasmo e apatia, agora é só pasmo e incompreensão. Não se sabe o que se passou, mas sabe que perdeu seu eixo, seu berço e sua morada.

– No miolo da cidade viva e concreta, subjaz uma infraestrutura imaterial, amparada em pilares não-físicos, com um equilíbrio sutil, quase bambo, mas também transsecular e firme. Essa estrutura foi abalada, e a massa foi removida de seu locus… E vaga, e gela noites, nucas, e arrepia pelos, e faz tremular psiquês, e abala as certezas da pólis.

Tentei balbuciar uma pergunta, mas a língua travou, seca. Ivo retirou o olhar que fincava em mim e, consternado, subitamente, olhou para os céus, e as nuvens responderam aos seus braços erguidos e roncaram.

– Ó, vasta incompreensão! Ó, tirania estúpida e demolidora! Ó metrópole ignóbil que se desconhece tão profundamente!

– Que massa é essa, Seu Ivo?!

– Essa massa que gela as noites, que atravanca os dias, que confunde as tardes, que complexificará as décadas vindouras… Essa massa injustiçada rudemente, apartada, desrespeitada quando merecia a glória das glórias… Essa massa outrora fêmea e viril, vibrante, ousada, urrante… Essa massa pode torrar as tarder, arder as manhãs, mas também gelar misteriosamente a noite até o fim dos tempos, até que ela seja reposta e recupere sua origem, seu concreto território! Seus gritos uníssonos e seus cantos, essa massa épica e lírica, maltratada pelo poder emburrecedor, vai vagar, incomodar, revirar urnas, remoer mentes até que algo seja feito, até que a reparação se complete e o pilar subjetivo da cidade seja recomposto… Não haverá paz, nem harmonia. É o preço… É o preço… Essa massa tem força primitiva e soberana… E… E…

Seu Ivo calou-se e chorou. O galo sentou, as nuvens enegreceram mais e mais, e as primeiras gotas caíram sobre Sulacap.

– Que massa é essa, Seu Ivo?

– Essa massa, meu filho, essa massa é a geral…

– A massa geral? O Todo? O Uno?

– Não, meu filho. É a Geral do Maracanã, desfeita, rebelde e sedenta de vingança. Eu demorei a identificar, mas é ela… É ela. Tirar o lugar do povo é condenar o próprio sossego. Vamos aguardar o desenrolar dos fatos. Fique bastante atento nestas noites de dezembro.