Salvador: capitanias hereditárias mantêm o povo cativo e dependente

Pelourinho - Centro Histórico de Salvador
Pelourinho - Centro Histórico de Salvador (Adobe Stock)

A Bahia, e o Brasil de igual modo, precisam se libertar das amarras econômicas, sociais, culturais e políticas de dominação que escravizam mentes e corpos desde a invasão em 1500.

Você já notou que todo dia tem notícia de pessoas sendo presas, assassinadas, espancadas, discriminadas?

E de tão corriqueiro, tem se normalizado estas atitudes contra apenas uma parcela da nossa população. Não é de se estranhar, dado que vivemos sob o jugo de uma escravização de mentes e corpos, em que o povo é apartado dos postos de decisão e poder, e mantido longe de uma educação cidadã e restauradora de sua dignidade.

E isso vem de longe. Salvador, capital da Bahia, desde sua fundação, está nas mãos de uma casta que domina os meios de produção, comunicação, transporte, turismo, esporte, educação etc. Esta mesma parcela dominante mantém sob seu jugo os poderes de decisão, justiça, política, cultural, empresarial. Sacou que a composição da Câmara de Vereadores, prefeitura e todos os órgãos vinculados se interligam e não é diferente nas esferas estadual e federal.

Pois é. Esta concentração de poder, com raras alternâncias, e muitas delas entre aqueles que já se estabeleceram, vicia todo o sistema e perpetua a desigualdade, a injustiça, a sensação de que não temos saída e que é assim que Deus quer, não é mesmo? Não dá para eximir donos de religiões majoritárias desse esquema de manutenção do status quo.

Vamos pegar um pequeno espaço da cidade como exemplo. O Centro Histórico foi gentrificado, retiraram dali todos os habitantes antigos, fizeram uma limpeza étnica e social, inventaram um espaço de visitação e passagem, que não só esvaziou o bairro de vida, como higienizou tudo para o turismo de passagem. Para ali acorrem boa parte dos passageiros de navios-cruzeiros, aviões, ônibus, ferry-boats, de tempos em tempos. O comércio formal está em franca decadência, o que sobra para nativos é a informalidade, está também morrendo com a ausência de frequentadores-turistas. Assim não dá!

Outro exemplo pra você refletir comigo. O Carnaval nasceu no Pelourinho, com a população que ali habitava, bem como nos bairros periféricos, com blocos de afoxés afro e indígenas. E quem é que ficou milionário com os frutos desta festa?

“Reis” e “Rainhas” momescos são os representantes dos opressores. A maior festa popular do planeta está elitizada, viu só?

E o povo só participa segurando cordas, carregando isopores de cervejas patrocinadoras do evento, montando e desmontando os palacetes para desfrute dos mesmos de sempre. Isso não está certo!

As demais festas populares só levam o adjetivo, pois são controladas também por uma minoria. O povo só faz figuração: São João, Festivais de Inverno e Verão, Cortejos diversos, Bonfim, Conceição da Praia, Yemanjá, Lavagens. Nessas ocasiões o povo ocupa a posição principal: ser escada ou tapete para os poderosos. Um absurdo!

Você quer mais? O transporte público está nas mãos da elite: metrô, pedágios nas rodovias, ferry, aeroporto, rodoviária, estações de transbordo, trem. Não se entra ou sai da cidade sem encher as burras dos dominadores. Quem financia os meios de transporte, no entanto, é o povo, através de impostos. É muita injustiça, meu irmão!

E o que sobra para o povão? Praias. Será? A única opção de lazer gratuito é na areia, de onde nossa gente tirava um pouco do sustento, para se manter em estado vegetativo. ERA, porque atualmente as praias foram higienizadas, gentrificadas, pasteurizadas. Não há mais festa, alegria, pessoas comerciando (quitutes, bronzeador, queijo coalho, cangas, acarajé, peixe frito, cerveja gelada, picolé, água mineral, geladinho, bijuteria, pastel, óculos de sol).

Não há mais ninguém ganhando uns trocados para olhar/guardar os carros, nem nas praias nem em nenhum lugar da cidade, como parques e passeios públicos. É uma legião de subempregados que agora não tem de onde tirar umas moedas. Viver na informalidade não é moleza. E nem isso mais a população tem nesta cidade. Qual a saída? Também quero saber…

Comércio local – a maior parte dos mercadinhos já foram fechados, por conta da concorrência estrangeira, que abre bigs e extra bigs em tudo que é esquina, predando e matando qualquer iniciativa de sobrevivência.

O que resta para ganhar a vida? Ser empurrado para assalto a ônibus, se submeter a exploração sexual, arrancar fios de cobre, pegar um pacote de carne num engenho/mercado, se dopar com o ópio de mercadores da fé, ser envolvido no mercado ilegal de entorpecentes. E estamos falando da maior parte de uma população de quase três milhões de habitantes, desempregada, subempregada, sem formação técnica e/ou acadêmica, sem herança de capitanias…

E o chicote canta alto na cara da gente. Para manter o povo cativo, uma verdadeira cadeia de comunicação que se expande para todo o estado. Na capital ficam as sedes dos impérios, que dominam estrategicamente tudo o que é dito, falado, publicado, filmado, divulgado. Claro, bem claro, se é que me entendem. Há, também, os impostos, e um deles, o laudêmio, alimenta uma família desde o tempo da fundação da cidade.

Assim, a casta dominante se espreme nos chamados bairros nobres, de onde vigiam e punem, com chicote e balas ‘perdidas’, com o apoio de uma massa dependente de migalhas e de proteção. O ciclo se fecha, passamos a vigiar nossa gente e a denunciar, quando não fazemos justiça com as próprias mãos. Para quem não é esquartejado em praça pública, se conseguir fugir da repressão oficial e popular, resta o caminho da prisão, onde só entra quem tem a cor da injustiça tatuada no corpo e na alma, por gerações. E de lá não escapa. Pois a justiça também faz seu papel de cumprir a lei criada para manutenção do poder.

Para mudar esse cenário, não há acordo, conversa ou conciliação possíveis sem quebrar a espinha dorsal do sistema.

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Valdeck Almeida de Jesus
Valdeck Almeida de Jesus é jornalista definido após várias tentativas em outros cursos, atua como free lancer, reconhecendo-se como tal há bastante tempo. Natural de Jequié-BA (1966), e escreve poesia desde os 12, sendo este o encontro com o mundo sem regras. Sua escrita tem como temática principal a denúncia: política, de gênero, de raça, de condição social, de preconceitos diversos: machismo, homofobia, racismo, misoginia. Coordena o movimento “Galinha pulando”, o qual pode ser visto no blog, no site e nas publicações impressas. Este movimento promove anualmente um concurso literário, aberto a escritores(as) do Brasil e do exterior. A poesia lhe trouxe o encantamento, mundos paralelos, as trocas, a autocrítica, a projeção de si e de outro(s), maior consciência de classe e de coletivo. Espera que as sementes plantadas se tornem árvores, florescendo e frutificando em solos assaz diversos. Possui 23 livros autorais e participa de 152 antologias. Tem textos publicados em espanhol, italiano, inglês, alemão, holandês e francês. Participa de vários coletivos da periferia de várias cidades, bem como de algumas academias culturais e literárias.