Pouco se tem falado e escrito sobre o papel preponderante da pesquisadora e cientista Nísia Trindade no primeiro escalão do governo recém-instalado em Brasília. Para além da primeira mulher ministra da Saúde, é necessário avaliar este ineditismo na burocracia oficial como resultado da sua atuação à frente da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, que presidia durante toda a fase mais aguda da pandemia, a partir de 2020.
Nenhum setor do governo foi tão duramente atingido naquele período quanto a Saúde, com dois ministros médicos até chegarmos ao general Eduardo Pazuelo que, sem embasamento científico algum, curvou-se aos caprichos do chefe presidente da república com a declaração ao vivo na televisão “Um manda e outro obedece”. Este princípio da caserna foi o chão comum onde desfilaram todos que passaram pelo governo de então.
Pois agora a doutora Nísia assume o ministério e promete a revogação de todas “as portarias e notas técnicas que ofendem a ciência, os direitos humanos, os direitos sexuais e reprodutivos e que transformaram várias posições do Ministério da Saúde em uma agenda conservadora e negacionista”. E infelizmente não se restringiram à adoção oficial da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, mas também a área da saúde mental sofreu violento ataque dos burocratas de plantão:
“Vamos revogar toda a parte de saúde mental que contraria os preceitos que nós defendemos como humanização da luta antimanicomial”, disse ao tomar posse. “A questão da saúde da mulher, onde estão previstos retrocessos em relação ao que a própria lei define, questões ligadas ao financiamento também, mas isso terá que ser revisto com cuidado, de maneira que estados e municípios que receberam repasses não tenham nenhum prejuízo.”
Nísia é muito bem vinda no ministério da Saúde, sobretudo no momento de resgate da ciência e de seus profissionais esculhambados e reduzidos a pó pelos ignorantes do negacionismo apoiado e insuflado por Jair Bolsonaro, o maior responsável pelo fato de o país não ter poupado mais de 400 mil mortes das quase 700 mil registradas desde o inicio do isolamento social e da quarentena, em março de 2020. A estimativa não é minha, nem mesmo nossa: é da Universidade Johns Hopkins e da própria Organização Mundial da Saúde.
Assim como na Saúde, outras áreas do governo – praticamente todas, mesmo as mais técnicas – terão de passar por uma reconstrução emergencial, imediata, urgente, com o perdão dos pleonasmos. A Terra não voltará a ser plana jamais, ideologia de gênero não será jamais argumento em discussão séria, armar o cidadão comum será novamente incentivo à barbárie, homofobia, machismo, misoginia e racismo serão combatidos em toda as suas manifestações; e por aí seguiremos a trilha de volta á democracia.
É claro que não será fácil o caminho nem suave e agradável o trabalho, mas é exequível e será feito de bom grado, cada etapa vitoriosa é uma árvore que cresce depois do incêndio. Nísia Trindade presidiu a Fiocruz no pior da tempestade e hoje é ministra, assim como outros homens e mulheres venceram a barreira da estupidez dos últimos quatro anos e agora terão a tarefa de reerguer o país, combater a desigualdade e celebrar a diversidade nacional, em que não é crime sair do tom, fugir dos padrões, discordar.