Fazer parte da corrente popular pró-governo já teve um gostinho de vingança contra as esquerdas, de maneira difusa e muito confusa porque incluía nelas qualquer coisa que não cheirasse a Olavo de Carvalho, inclusive a Globo e seus tentáculos. De minha parte gostava de ver no bolsonarista o cachorro brabo que se anuncia na plaquinha “cuidado com o cão” à porta das casas suburbanas, com o olhar enfurecido do Jair, latido rouco e baba grossa a escorrer pela boca. A gente cruzava a frente da casa na calçada e ele saltava, ameaçador, por trás do portão na altura da nossa cabeça e emitia sons assustadores saídos da sua alma canina mais profunda. Por um breve tempo, apoiar Bolsonaro, repetir suas sandices entre familiares, foi o máximo da vanguarda política, a pessoa estava engajada num contingente de dezenas de milhões de outras que concordavam com ela em gênero número e grau.
Aí a casa começou a cair, primeiro com Queiroz, depois com Michele, logo com Flávio, e vem mais gente por aí, não há jeito de estancar a sangria desatada. Não porque o povo em sua alta consciência ideológica e coerência política percebeu a falsidade das promessas de acabar com a corrupção feitas agorinha mesmo ao som do rá-tá-tá-tá de armas fictícias contra os opositores. Não, nada disso, a verdade nua e crua é pragmática: a Globo não quer que o novo governo reparta a verba publicitária de forma mais igualitária. E Jair já adiantou na primeira semana de mandato:
“Nenhum órgão de imprensa terá direito a mais ou menos daquilo que nós viermos a gastar com nossa imprensa. Queremos uma imprensa mais forte e isenta. A imprensa livre é a garantia da nossa democracia. Vamos acreditar em vocês, mas estas verbas não serão mais privilegiadas para a empresa A, B ou C”. O conteúdo insofismável não permite dúvidas, e um simples levantamento estatístico revelou que a Globo recebeu 493 milhões de reais ao ano em média no período Lula, Dilma e Temer. Naqueles mesmos 15 anos, a Record recebeu 144 milhões, o SBT 136 milhões, a Band 89 milhões, e a RedeTV!, 32 milhões. Como vemos, a Rede Globo abocanhou a parte do leão no bolo de publicidade do governo, quase meio bilhão de reais por ano, sem contar a mídia impressa e as emissoras de rádio.
A Globo não quer nem ouvir falar em repartir a dinheirama, como tampouco aceita a ideia de “regulação da mídia”, que rotulou desde a primeira vez como “censura” e por censura, entenda-se toda e qualquer tentativa de impor limites ao império Marinho. Por outro lado, “uma imprensa forte e isenta” jamais foi plano de Bolsonaro, militar do exército mais afeito ao controle do que à livre circulação de ideias e notícias, e sabendo muito bem das intenções do capitão, a Globo ligou a chapa de fritar presidentes, por onde já passaram Fernando Collor, Lula e Dilma. Dois caíram e o barbudinho paga caro por ter vencido o império com a reeleição em 2006.
Aquele gostinho de vingança mencionado no início deste texto se diluiu no processo conduzido pela Globo, que consiste em passar o trator na família Bolsonaro no noticiário rotineiro e ridicularizar como quiser nas matérias especiais como a do Fantástico. O contingente bolsonarista vai sofrer desgaste e uma vez gasto o que lhe resta de munição política vai sobrar apenas um bando de celerados aos gritos de “Mito! Mito!”. De pouco adiantará ao governo aliar-se à Record e ao SBT, e nem mesmo criar a CNN brasileira, porque o poder construído pela Globo em meio século é muito mais sólido do que democracias e ditaduras que aconteçam. Ingressamos, assim, em outro estágio e se pusermos num lado da corda os bolsonaristas e o pessoal dos primeiros escalões do governo e no outro os profissionais globais e o material que lhe é servido diariamente por ministros desastrados, policiais, procuradores e juízes interessados não é difícil antecipar o vencedor. Mourão pode já ir se preparando para a posse com total cobertura da imprensa que, aliás, não faz outra coisa além de encher a sua bola.