Como a ética enviesada da sociedade brasileira desvia o enfrentamento do problema negro
Freqüentemente, ouço as falas políticas disfarçando o problema negro brasileiro com a máscara da pobreza, em que 31% são brancos e 79% são negros.
As realidades não são as mesmas, pois quando ascende na escala social o negro continua a ser discriminado, só que de forma mais sutil e covarde, contrariando o senso vigente de que riquezas são diferenças.
Como o trabalho do negro sempre foi essencial à manutenção do bem-estar ocioso das elites, firmou-se um pacto de gestão social dessa classe sob uma ética conservadora da desigualdade. As arraigadas convicções escravocratas criaram estereótipos que ultrapassam os limites do simbólico e incidem, até hoje, em todos os aspectos das relações sociais.
O discurso dominante desdenha as manifestações de inconformidade como sendo fruto de um complexo de inferioridade sem justificativa, já que a doutrinação oficial na opinião pública propaga o não acolhimento de práticas discriminatórias ou preconceituosa no seio da “Pátria Mãe Idolatrada”, com todas as políticas sociais flertando desavergonhadamente com o assistencialismo paralisante!
O que não nos contam nas escolas versa sobre o fato de 65% da população carcerária ser negra, mais de 60% da população ser afrodescendentes e apenas 3,8% destes terem curso superior, e a política educacional federal prevê cotas irrisórias de 20% para negros e pardos.
Por que, na Semana de Consciência Negra, Zumbi dos Palmares, líder quilombola massacrado cruelmente, continua sendo o único exaltado? Temos que nos lembrar apenas de nossa dor? Onde fica o espaço reservado para os filósofos como o geógrafo Milton Santos, que dizia: “Ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo.“ E o lugar de escritores como Carolina Maria de Jesus, negra, favelada, que no exterior só perde em vendagem para Paulo Coelho e foi extirpada do cenário nacional por suas criticas aos governos militares?
Transformar a data em reafirmação de identidade, híbrida que seja, seria mais proveitoso para nossa juventude que não se vê representada na política, na mídia e muito menos nos, e perante aos corpos docentes de nossas Instituições de Ensino.
Construir identidades passa pela herança cultural duramente aprendida e inventada, com valor reconhecido socialmente. Leva tempo e é conquistado com ação e reação.
Nesse âmbito, nosso debate foi esvaziado por nossa própria ambiguidade. Aceitamos o lugar predeterminado, lá em baixo, e nos “comportamos”. Regozijamo-nos com bolsa-família, restaurante popular, aprovação automática e quase nos esquecemos que moramos em favelas, covardemente invadidas e fatiadas pelo mais forte.
Lá, não pagamos IPTU, entretanto não temos saneamento básico ou projetos públicos permanentes para crescimento sustentável das comunidades, que realmente enfrentem as diferenças estruturais econômicas e sociais dessa ampla parcela do povo.
Aguardo o dia em que ser negro no Brasil seja simplesmente ser brasileiro.
Denise Homem