Que terrível, tenebroso e sintomático espetáculo tivemos neste 20 de novembro do fatídico ano de 2016. O Dia da Consciência Negra transcorreu regido pela mesmice secular da violência e da brutalidade, que são o exato oposto da consciência. O século 16 dando as caras em pleno 2016, humilhando nossas pretensões progressistas (se é que elas existem ainda, ou foram sepultadas de vez pelo horror crescente do quadro social local e global).
No sábado, as notícias que chegaram foram sobre a guerra na Cidade Alta: guerra de facções pelo domínio do território. Tiroteios incessantes compartilhados pelo WhatsApp, famílias agoniadas, explosões. Muitas bocas repetindo o mesmo: voltamos aos anos 90 e suas sangrentas batalhas por territórios.
Conversei com um morador da região. Não vamos chamá-lo pelo nome, para não expor desnecessariamente. Vamos chama-lo de JK.
JK. me envia o primeiro áudio, cabreiro, porque falou, falou, falou, e na hora de enviar, “deu ruim”. Terá sido o acaso ou algum estratagema dos controladores, conspiradores e poderosos seres que dominam e complicam nossa vida social? JK está angustiado, preocupado, tenso. A comunidade onde mora, vizinha da Cidade Alta, tem estado na linha de tiro desta guerra. Caixas d’água perfuradas, a janela da vizinha atingida quando não havia ninguém em casa, a preocupação com os filhos pequenos e com o ir e vir na região.
“A cidade explodiu, já dava pra prever. Tá difícil, tá foda, tá triste. Tá difícil até de pensar em como continuar sendo pai, instruir nesta cidade, neste mundo, porque acho que a coisa é global” observa JK que, em seguida, me dá um histórico da região.
“Parada de Lucas e Cidade Alta é uma guerra antiga, de décadas. Cidade Alta é um conjunto habitacional. No meio de dezenas de favelas dominadas pelo Comando Vermelho (Cidade Alta, Vigário Geral, Furquim Mendes, Favela do Lixão, que já é Baixada, Dique, Beira-Rio, Kelson, Cinco Bocas, Pica Pau) está Parada de Lucas, dominada pelo Terceiro Comando. Parada de Lucas sempre foi Terceiro Comando. E sempre resistiu. Há pouco menos de uma década, o Terceiro também conseguiu dominar uma parte de Vigário Geral: o Parque Proletário. É um território simbólico para o Comando Vermelho, porque de lá saíram figuras como Flavio Negão, Chiquinho Rambo e Cuco da Formiga, caras que imperaram durante um longo tempo. No último final de semana, resolveram expandir o território para a Cidade Alta. A invasão foi de sábado para domingo. Na segunda, o pessoal do Comando tentou retomar, e foi mais tiroteio. Agora deu uma acalmada. Estamos há 24 horas sem bala comendo”.
Novamente a rotina de uma parcela da população da cidade é transformada em rotina de guerra. O Facebook vira diário de guerra, o WhatsApp vira rádio de guerra, circulando febrilmente áudios de assustadores tiroteios. A boataria é imensa, e também alimentada pelas redes. Alarmes apócrifos, orientações para não sair de casa, notícias falsas.
No domingo propriamente dito, nosso 20 de novembro da Consciência Negra, a guerra se expande. Via redes sociais e grande mídia, alcança toda a cidade, o país e ganha o mundo. Passamos da Cidade Alta para a Cidade de Deus. Esse conjunto habitacional tem maior destaque, graças ao cinema.
Um helicóptero cai. 4 policiais morrem. E o horror se alastra. Corpos na mata, execuções, fotos, videos, imagens assustadoras. Até quando? Até quando esta insana guerra inútil continuará ceifando vidas? A polícia mata e morre, as facções se entredevoram, parte da população agoniza, parte da população vibra, sádica, sedenta do sangue e de bandidos mortos.
Não há planejamento, não haverá ganho algum a pequeno, médio ou longo prazo. É só uma ação de força bruta, ineficaz, que tortura moradores, atordoa crianças, maltrata idosos e traumatiza cidadãos, gerando imensa dor psíquica coletiva.
E assim, em pleno Dia da Consciência Negra, estivemos assistindo/vivenciando este terrível espetáculo de uma sociedade incapaz de aprender com os próprios erros, insistindo nos equívocos como se fossem soluções. Não são. São explosões revoltas de um fracasso retumbante, de uma guerra inútil, estúpida, assassina, voraz. Violência gerando violência gerando violência gerando violência gerando violência…
Até quando?
Quando desenvolveremos nossa Consciência?
Como parar esta guerra insana?