“Deus acima de tudo, Deus acima de todos
Acima de todos mesmo, pisando na cabeça
Esmagando, vai, vai” (Hot e Oreia, “Eu vou”.)

No Brasil, desde 2007, o dia 21 de janeiro é conhecido como o dia nacional de combate à intolerância religiosa (antes tarde do que nunca). Respaldado pela Lei n.º 11.635, de 27 de dezembro, foi oficializado em homenagem a mãe Gilda, que sofreu (e ainda sofre) ataques, discriminação e violências por conta de sua religião.

Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda, fundou em 1996 o Ilê Axé Abassá de Ogum, Terreiro de Candomblé localizado nas imediações da Lagoa do Abaeté, bairro de Itapuã, Salvador (BA). O caso de intolerância religiosa contra ela ficou conhecido internacionalmente e consistiu em uma reportagem da Igreja Universal do Reino de Deus, por meio do tendencioso jornal Folha Universal, que em 1999 utilizou uma fotografia da revista Veja com o título: “Macumbeiros charlatães lesam o bolso e a vida dos clientes”.

“Nesta reportagem, a foto da Mãe Gilda, aparece com uma tarja preta nos olhos. A publicação dessa foto marca o início de um doloroso, porém definidor processo de luta por justiça da família e de todos os religiosos do Candomblé.”

Após esse episódio, diversos problemas começaram a atingir diretamente a vida da mãe Gilda, entre eles: o descredito de integrantes de sua própria religião (que associaram a reportagem da Folha Universal a uma “suposta conversão” da líder religiosa), ataques diretos à sua casa, ao seu marido, violências verbais e físicas dentro do próprio terreiro, e destruição dos objetos sagrados do mesmo.

O dia 21 de Janeiro representa, portanto, uma conquista na luta pelo respeito da diversidade religiosa. Contudo, no Brasil, ainda lemos diariamente notícias de ataques e violências às religiões que não se adequam aos padrões cristãos-fundamentalistas e ortodoxos. E isso não se aplica apenas às religiões de matrizes africanas, outro exemplo disso são as igrejas inclusivas que, apesar de recentes no Brasil, enfrentam ataques e pré-conceitos de vertentes mais tradicionais do cristianismo.

É muito comum, entre os discursos que se dizem fundamentar e reivindicar a verdadeira noção do cristianismo, a associação dessas religiões/vertentes ao demônio, à maldade, ao mau. Parece difícil para os cérebros pensantes compreender que cada um deve e pode viver a sua fé da forma que lhe faz bem. E que o verdadeiro “pecado” é violentar em prol de sua própria fé.

A história de Mãe Gilda, que faleceu no ano 2000 depois de ter sido vítima da intolerância religiosa realizada pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), se repete todos os dias. E inclusive tem feito parte de discursos políticos e de verdadeiras bancadas “religiosas” que ferem a laicidade do Estado e o direito à diversidade no Brasil. Tais políticos/religiosos tentam impor suas morais e dogmas religiosos às crenças e valores de todo um país.

O slogan, que seria uma piada se não fosse tão sério, representa um símbolo de imposição religiosa: Brasil acima de tudoDeus acima de todos.

Contudo, isso não faz parte apenas do seio religioso e político; dentro das próprias favelas e comunidades no Brasil se vê notícias de intolerância e violências à terreiros de umbanda e candomblé, por exemplo. O que é contraditório, quando nos damos conta de que as religiões de matrizes africanas estão diretamente ligadas à história de nossos territórios, sendo o discurso cristão hegemônico e excludente, herança de uma colonização que segue justificando a marginalidade e condições de vidas enfrentadas pela maioria dos nossos, adentrando inclusive às nossas subjetividades e fé.

Jesus faria o que os ditos cristãos fazem? É uma pergunta retórica pois todos sabemos que não. Matar pela religião é crime. Discriminação por crença também. É muito comum nas escolas, tratarmos as festividades cristãs como centro da sociabilidade entre os estudantes. Páscoa, Natal, feriados, e por aí vai… Em contrapartida, quando se trata de – apenas – falar das religiões africanas, percebe-se o medo, o repúdio e o pré-conceito instaurado nas cabeças e corações das pessoas.

O Brasil não é um país cristão! O Brasil é um país de diversidade, e sendo elas já amparadas pelas leis, devem ser respeitadas, com a necessidade de punição e rechaço daqueles que  as descumprem. Inclusive, o presidente, se for preciso!

A hipocrisia e contradição é notória, quando se percebe toda uma mobilização referente ao trabalho artístico do Porta dos Fundos: “Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo”. Mas e a história de resistência dos terreiros? E a mãe Gilda? quem conhece nas escolas? A revolta é mais que seletiva, ela é branca, europeia, hegemônica e racista.

Ainda sobre o caso de Mãe Gilda:

“Membros da Assembleia de Deus atacaram verbalmente e fisicamente, jogando a Bíblia sobre a sua cabeça e dizendo que iam exorcizá-la, que iam tirar o demônio do corpo dela. Mãe Gilda ficou muito abalada”, relata Flávio Magalhães, filho do terreiro Abassá de Ogum.

Lembro de uma passagem da bíblia, e me pergunto se Jesus não entraria novamente quebrando o templo e tirando os panos da hipocrisia, racismo e violência que se escondem por trás dás máscaras “cristãs”. Amar ao próximo como a ti mesmo, sem exceção, parece um conteúdo a ser interiorizado  dentro de quem se diz professar o amor de cristo.

O Brasil registra uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas; os adeptos de religiões de matriz africana estão entre os principais alvos. Segundo o último levantamento do Ministério da Família e dos Direitos Humanos, realizado há dois anos, umbanda e candomblé eram as religiões mais perseguidas no país.

“Essa aqui eu fiz incorporado no ancestral
O índio e o negro, espírito imortal
Suba no seu palanque, carregue seu tanque
Tamo fazendo um feitiço pra adiantar seu funeral” (Hot e Oreia, “Eu Vou”.)