Professora da UERJ e epidemiologista do Hospital Federal dos Servidores do Estado, Doutora em epidemiologia pela FIOCRUZ/Johns Hopkins University e pós-doutoranda em epidemiologia das doenças transmissíveis pela UFRJ, Tatiana Eleuterio fala, numa conversa franca e direta à Agência de Notícias das Favelas sobre pandemia e o chamado “novo normal”:
O governo federal tem se mostrado hostil ao isolamento social e defendido a imunidade de rebanho. Você poderia conceituar esta ideia e esclarecer por que ela é controversa?
Tatiana – A imunidade de rebanho é um efeito protetivo que surge em uma população quando ocorre infecção de um grande percentual de pessoas e essas se tornam imunes a uma doença, ou quando grande percentual da população adquire imunidade por meio da
vacinação. Com a imunidade de rebanho, mesmo os indivíduos que não tenham se tornado imunes, seja por terem contraído a doença ou por terem sido vacinados, ficariam protegidos do vírus. Um exemplo clássico de imunidade de rebanho ocorre quando se atinge uma cobertura vacinal elevada para uma determinada vacina; com 95% das pessoas imunizadas, o vírus não circula mais, pois o percentual de suscetíveis na população se torna muito pequeno. Contudo, como para a Covid-19 ainda não existe vacina com eficácia e segurança totalmente comprovadas para imunização em larga escala, um indivíduo só se torna imune após o contato com o vírus.
A defesa dessa ideia pelo governo é problemática porque a partir do momento que se expõe uma grande população de suscetíveis ao vírus, nessa população existem indivíduos com diferentes condições de risco para a apresentação grave da doença, tais como idade e presença de comorbidades. Desse modo, parte da população que possa vir a ser acometida está exposta ao risco de morrer pela doença. Além disso, existe o problema da sobrecarga do sistema de saúde.
O ministro Gilmar Mendes se referiu à atuação do governo como genocida. Você concorda com essa afirmação?
Tatiana – Genocídio é o extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade ou população. Podemos dizer que expor a população deliberadamente ao risco de adoecer e morrer por uma doença, mesmo que a ciência aponte para a necessidade da implementação de medidas de distanciamento social como principal estratégia para a mitigação da epidemia, é um posicionamento irresponsável por parte do governo, e não baseado nas evidências científicas disponíveis.
A pandemia acabou acentuando a grande chaga brasileira da desigualdade social. O povo preto e pobre, em especial, tem sido a grande vítima. Apesar disso, como você tem avaliado o papel do SUS em um contexto como esse e que atende essa população mais vulnerável?
Tatiana – A sobrecarga provocada pela alta demanda de atendimentos e ocupação de leitos provocou colapso no sistema de saúde de vários municípios brasileiros e colocaram nosso SUS em xeque durante os últimos meses, mas ainda assim temos resistido. Em meio ao caos da pandemia e a todos os conflitos gerados entre as esferas de governo, o SUS é o maior trunfo que o Brasil tem no combate ao novo coronavírus.
Importante ressaltar que, dentre os países com mais de 200 milhões de habitantes, o Brasil é o único que possui um sistema de saúde gratuito e universal. Em que se pesem suas limitações e permanentes desafios, o acolhimento proporcionado pela atenção primária em saúde, sobretudo para as populações mais vulneráveis e tendo as unidades básicas de saúde e a estratégia de saúde da família como porta de entrada do sistema, é um modelo de referência para o mundo. Viva o SUS!
O que esse tempo chamado de “novo normal” pode deixar de legado no dia a dia das pessoas? Há aspectos comportamentais positivos que podem ser aproveitados desse contexto para o futuro período pós-pandemia?
Tatiana – Penso que o maior legado que essa experiência pode deixar para a humanidade é a capacidade altruísta e de responsabilidade social de cada cidadão. É o pensar coletivo, para além de suas necessidades individuais, visando o cuidado consigo e com o próximo.
Darcy Ribeiro afirmou que esse país tem tudo pra dar certo. Você acredita a partir de agora numa atuação mais eficaz do poder público na área da saúde?
Tatiana – O Brasil precisa de uma liderança que, na área de saúde, seja norteada por uma equipe técnica qualificada e embasada em evidências científicas, de modo a subsidiar a tomada de decisões de forma adequada e ponderada, de acordo com a situação específica de cada localidade, considerando a grande heterogeneidade e a dimensão continental do nosso território. A comunidade científica espera que a lição esteja sendo aprendida.