A Constituição da República, no artigo 215, garante a todos os brasileiros o pleno exercício dos direitos culturais, pregando o incentivo à valorização e à difusão das atividades de cultura no país. Em poucas palavras, é dever do Estado Brasileiro proteger e garantir as manifestações populares. No Estado do Rio de Janeiro, o funk já é reconhecido pela Lei 5543, de 2012, como movimento cultural e musical de caráter popular.
Ao longo dos últimos 50 anos, o funk, importado dos EUA e reinventado por influências rítmicas e culturais brasileiras, transformou-se em um dos grandes movimentos da cultura popular tupiniquim. Em meio século, o chamado “funk carioca” produziu obras que entraram para o imaginário popular como verdadeiros hinos que flertam com o amor, com a cidade, e também com a violência.
Diversos trabalhos com viés antropológico, criminológico, mercadológico e musical já foram publicados sobre o tema. Embora exista uma farta produção acadêmica desmistificando a histórica associação do funk com crimes e desgraças, lamentavelmente, ainda hoje existe uma corrente que insiste em reafirmar um posicionamento retrógado, preconceituoso e classista sobre o estilo musical.
Em artigo publicado no Jornal O Globo, de 26 de junho de 2016, o deputado estadual Milton Rangel (DEM) desqualifica, sem a menor sensibilidade ou responsabilidade política – sobretudo em razão do cargo que ocupa – toda a história deste movimento absolutamente legitimo e autêntico. Nas palavras do deputado, “seria o cúmulo da vergonha considerar um tipo de música tão vulgar e ridícula como forma de manifestação cultural” (“Cultura da Futilidade”, Jornal O Globo, 26/06/2016).
A tarefa de classificar o que é ou não cultura nos remete a um período sobre o qual não vale a pena tecer qualquer palavra; afinal, os milhares de livros, filmes e documentários sobre o tema estão aí para serem lidos e vistos repetidas vezes. A história, como eterna testemunha eficaz dos acontecimentos, ensina que a discricionariedade, nesse caso, sempre resultou em processos vergonhosos para a justiça e democracia brasileiras.
Não foi por outro motivo que o processo de redemocratização brasileiro reconheceu no artigo 5, inciso IXe 220, § 2º da Constituição da República, que é livre toda manifestação intelectual, artística, cientifica e de comunicação, sendo vedada qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. A cultura, desse modo, deve ser interpretada sempre do ponto de vista macro, sem limites ou classificações, e está intrinsecamente associada aos costumes e ao cotidiano do seu povo.
O funk carioca paga o preço por ser um estilo musical que produz e reproduz um vasto material que genuinamente pertencente a um modelo estético de expressão que circunscreve a realidade dos morros e favelas do Rio de Janeiro.
O deputado Rangel foi categórico ao afirmar em seu artigo que “o funk está ligado à banalização do crime e à vulgaridade”, ignorando por completo a realidade. São justamente as consequências da banalização do crime – impostas aos moradores de morros e favelas com as diárias operações policiais promovidas pela fracassada guerra às drogas – que reproduzem o material estético de um dos vários segmentos do funk, conhecido como “proibidão”.
No caminho tortuoso do estilo musical funk, sempre haverá métodos que o impossibilite de seguir sua jornada nas vozes roucas dos MCs, nas mãos calejadas dos DJs e na militância política dos seus admiradores.
Nas festas e casamentos de seus opositores, o tamborzão seguirá tocando.
Publicado na edição de agosto de 2016 do Jornal A Voz da Favela