Por Carlos Palombini.
Dia 9 de agosto de 2012 escrevi a Nilo Batista, algum tempo depois de encontrar meu amigo Gustavo Lopes em seu estúdio no Largo da Batalha, em Niterói, e ouvir de Gelouko, seu DJ-produtor, que Gustavo não recebia direitos autorais por “Na faixa de Gaza é assim”, hoje com mais de quinze milhões de acessos no Youtube, porque “proibidão não paga direito autoral”. Carlos Bruce Batista me escreveu em 23 de outubro para dizer que Nilo, seu pai, tivera a ideia de incluir um livro sobre proibidões na série Criminologia de Cordel, publicada pela Revan para o Instituto Carioca de Criminologia. Carlos convidou um grupo de autores das áreas de direito, música e cultura, e obtivemos a colaboração de dois dos mais importantes compositores do subgênero que, nas palavras do DJ Marcelo André, em entrevista recente, “é o mais autêntico”: Thiago dos Santos (Praga), da Vila Cruzeiro, e o próprio Gustavo Lopes (MC Orelha), da Ititioca. Minha contribuição consistiu numa entrevista com Gustavo e numa análise de “Na faixa de Gaza é assim”. Dia 26 de novembro, este ano, nos reunimos no Circo Voador para o lançamento. O ministro da Suprema Corte argentina de Justiça, Raúl Zaffaroni, o delegado Orlando Zaccone D’Elia Filho, o empresário Rômulo Costa, e os MCs Catra, Leonardo e Smith estiveram presentes.
Embora a maioria dos autores não esteja exatamente no início de suas carreiras, creio poder falar em nome de todos e dizer que é um trabalho do qual nos orgulhamos de modo particular, pois nos achamos em companhia de pessoas que admiramos pessoal e profissionalmente. Tanto que, há alguns dias, fui procurar na rede mais quinze exemplares do livro para dar de presente. Foi quando me deparei com alguns comentários curiosos e talvez representativos, um deles publicado em El Hombre. Pedro Nogueira, editor-chefe do portal, me convidou a respondê-lo.
Não é estimulante, do ponto de vista intelectual, refutar o senso comum, em especial quando ele sequer se dá ao trabalho de revestir-se de algum simulacro de coerência, mas limita-se a fazer alarde de gostos e opiniões teórica e empiricamente desinformadas. O que há de mais elaborado é o título, síntese de uma ignorância que o benefício da dúvida me obriga a considerar honesta. Não pode haver “culturalização” do que já é em si cultura. Seria necessário que o autor apresentasse uma definição de cultura capaz de excluir o funk carioca de seu âmbito para que o termo tivesse qualquer autoridade. Essa definição, por óbvio, não existe. “Culturalização” no caso deve ser tomada como paródia caricatural de “criminalização”. A caricatura, comum no funk carioca, ilustra aqui a impossibilidade em que a cultura nacional se encontra de produzir um intelectual de direita. Tampouco há “choradeira em torno da crise do gênero brasileiro”, porquanto não está em crise a música, estão em crise alguns daqueles que a produzem. Para o autor o problema é simples: ele vai passar-nos uma descompostura e necessita de “choradeira” que a justifique. Esse pai preocupado com nossa educação todavia carece de autoridade.
Na introdução alguns parágrafos pretensamente neutros deveriam fornecer evidências de imparcialidade, não fossem estas anuladas pelo investimento libidinal exorbitante no título. Examinemos não mais que um excerto:
O samba aconteceu “de dentro para fora” como expressão da cultura popular brasileira e, assim, foi autêntico, espontâneo; o funk carioca ocorreu “de fora para dentro” como derivação do miami bass americano e, assim, foi forjado, imposto como expressão da cultura popular brasileira por um discurso ideológico elitista, reacionário e paternalista consistente em um moralismo às avessas (induzir a sociedade a interpretar coisificação da mulher como luta feminista, pobreza como estilo de vida, ignorância como caricatura, conformismo como engajamento político, ostentação material como cidadania) interessado em processar o etnocentrismo, o higienismo e a marginalização que aprisiona, domestica e submete as classes pobres na armadilha da segregação social.
A contraposição entre uma música que aconteça “de dentro para fora” e outra que ocorra “de fora para dentro” não tem qualquer embasamento na História. Trata-se da expressão de uma ideologia, esta sim, em crise: a nacionalista, que permeia a maior parte de nossa historiografia musical. A caricatura aqui não se apresenta como máscara: ela é a própria face. Ao dizer-nos essas “verdades duras”, nosso bom paizinho ríspido estetiza o político para inverter papéis e apresentar-se em pele de cordeiro: somos nós “os interessados na manutenção da segregação social”; somos nós que projetamos “nos outros os próprios preconceitos”; somos nós quem quer convencê-lo “de que as classes pobres estão sendo valorizadas”.
Durante o período de ascensão do nazifascismo muitos intelectuais aderiram ao regime. Louis-Ferdinand Céline, escritor engajado, escreveu panfletos antissemitas e aproximou-se dos colaboracionistas, mas não deixou de ser considerado um dos grandes inovadores da literatura francesa. Já Robert Brasillach foi julgado e condenado à morte. Em sua defesa saíram Paul Valéry, Paul Claudel, François Mauriac, Albert Camus, Jean Paulhan, Jean Cocteau, Colette, Arthur Honegger, Jean Anouilh, Jean-Louis Barrault e muitos outros — inutilmente. Artur Dias não é fascista nem intelectual, mas talvez tenha razão neste ponto: “Entre os níveis de obscurantismo aos quais uma sociedade pode ser submetida — pobreza material, pobreza artística, pobreza cultural —, talvez o pior deles seja a pobreza simbólica.” Quem não estiver convencido que o leia!