Um dos bairros da periferia de Belém, Terra Firme é o mais populoso da cidade e tem aspectos na sua história e atualidade que nos remetem às favelas do Rio de Janeiro, tais como a ocupação do terreno, as políticas de segurança pública, entre outros.
Por Miriane da Costa Peregrino
A chacina de 4/5 de novembro
No mês de novembro, a chacina de dez pessoas em bairros da periferia da cidade de Belém do Pará ganhou destaque nacional nos meios de comunicação. Na madrugada de 4 para 5 de novembro, um grupo de extermínio promoveu uma noite de terror em Belém com toque de recolher, ameaças difundidas através de áudio pela internet e celulares e a execução sumária de dez pessoas em uma ação que atingiu diretamente seis bairros – Terra Firme, Guamá, Jurunas, Tapanã, Canudos e Marco – em represália a morte de um cabo da Polícia Militar, Antônio Marco da Silva Figueiredo, 43 anos. O cabo era conhecido por sua violência na Rotam – Ronda Tática Metropolitana da PM. Logo em seguida, os bairros atingidos pela ação violenta desse grupo de extermínio e movimentos sociais criaram o Fórum das Periferias e, no inicio de dezembro, a Assembleia Legislativa do Pará instalou a CPI dos Grupos de Extermínio para apurar o caso da chacina.
“Foi avisado com áudios, dizendo para as pessoas não sairem de casa que ia ter uma limpa. Não teve como esconder. Todo mundo conhecia alguém que tinha recebido o áudio” – lembra Samantha Caldas, 23 anos, moradora do bairro Terra Firme.
Segundo moradores, todas as viaturas da Unidade Integrada Pro Paz (UIPP) foram embora na noite de 4 de novembro e as luzes dos bairros foram apagadas, facilitando a ação dos grupos de extermínio. A primeira UIPP do Pará foi instalada na Terra Firme, o bairro mais populoso da cidade de Belém, em 2011. A UIPP foi criada nos moldes da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) instalada nas favelas da cidade do Rio de Janeiro e, provavelmente, é por isso que os moradores da Terra Firme usam o termo UPP para nomear a UIPP.
“Quando a UPP veio, melhorou, mas melhorou porque os policiais fizeram acordo com os bandidos” – Disse uma moradora.
No dia 23 de novembro, domingo de manhã, o Fórum das Periferias promoveu um ato em protesto contra a chacina das dez pessoas. O ato saiu da Praça Olavo Bilac, em frente a Igreja São Domingos, no bairro da Terra Firme e percorreu as ruas onde as pessoas foram assassinadas. Segundo moradores, as mortes foram aleatórias e as vítimas eram trabalhadores com endereço fixo.
“Um aluno de uma escola perto de casa morreu e ele nunca teve nada com a criminalidade. Duas semanas depois que ele faleceu, a escola fez um culto em homenagem a ele” – conta o professor de dança Manuel Júnior, morador da Terra Firme.
Nesses dias foi impossível encontrar alguém que não tivesse algo a dizer sobre a chacina ou que não conhecesse alguém que fora vítima dela. “O primo do Reyveson, meu estagiário, faleceu perto da casa dele. Mas não ficamos parados, resolvemos fazer caminhadas nas ruas da Terra Firme pela Paz e recolher assinaturas também” – contou Helena Quadros, servidora do Museu Paraense Emílio Goeldi, que atua desde de 1985 no bairro – “No dia 23 de novembro aconteceu a II Marcha da Periferia e o Cortejo Cultural pelas ruas da Terra Firme. Com gritos de Justiça e Paz, acompanhados com música, dança e poesia, o povo se manifestou contra a violência e extermínio do povo preto e pobre”.
Ponto de Memória da Terra Firme
Na parte da tarde do dia 23 de novembro, quem estava na abertura da IV Teia Nacional da Memória e 6o Fórum Nacional de Museus, pôde conferir a exposição “Terra Firme: de tudo um pouco” elaborada por moradores do bairro e membros do Ponto de Memória da Terra Firme (PMTF) em parceria com o Museu Paraense Emílio Goeldi e o Ministério da Cultura. A ideia principal da exposição é dar visibilidade a outros aspectos do bairro da Terra Firme – a história, o dia-a-dia, a cultura, a ciência e educação, e a memória – enfim, outros que não a violência que sempre aparece na mídia e coloca o bairro como um dos lugares mais violentos do país, estigmatizando os moradores da periferia como “gente ruim”, bandidos, ladrões, traficantes, etc.
“A mídia fala que aqui só tem ladrão, mas aqui tem de tudo” – afirmou Francisca Rosa dos Santos, a Dona Chiquinha, presidente da Associação de Moradores da Terra Firme e conselheira do PMTF – “A gente que mora aqui se sente orgulhosa de morar aqui”.
Muitos moradores da Terra Firme lutam contra a estigmatização que a mídia faz do bairro e, além das ações do PMTF, podemos citar as do Coletivo Casa Preta, os grupos de folclore Boi Terra e Boi Marronzinho, a quadrilha Rosa Vermelha, entre outros, que promovem ações que fortalecem a identidade local. “Atualmente moro aqui na Terra Firme e vejo que não é só isso, não é só violência” – disse Manuel Júnior.
Na parceria PMTF e Museu Paraense Emílio Goeldi, “realizamos vários projetos durante o ano, por exemplo, mapeamento cultural, semana de museus, primavera de museus, dentre outros” – afirma Helena Quadros. Dentre as ações do PMTF podemos destacar a realização de documentários produzidos por adolescentes no projeto Juventude e Imagem do bairro Terra Firme: Ritmos, cores e rostos da Terra Firme e Todo dia é dia de feira na Terra Firme.
A Feira da Terra Firme faz parte da identidade cultural da comunidade: “A feira tem mais cara de América Latina do que o Ver-o-Peso. Quinta-feira fica um cheiro de laranja no bairro. Eu já tentei morar fora da Terra Firme, mas não consigo me adaptar” – afirmou a moradora Samantha Caldas – “A feira funciona todo dia da semana e você encontra de tudo lá. O que você quiser comprar, você compra na Feira da Terra Firme”.
Luta pela terra
Outra ação que podemos destacar do PMTF é a edição do jornal comunitário O Tucunduba cuja primeira edição é de 1989 e foi uma iniciativa do Centro Comunitário Bom Jesus, onde os moradores da Terra Firme se organizavam na luta pela moradia. A ocupação das terras da Terra Firme ocorreu na década de 40. Hoje o bairro tem mais de 64 mil habitantes e a maioria da população é de baixa renda. João Batista, um dos fundadores do Centro Comunitário Bom Jesus e um dos conselheiros do PMTF, conta essa história: “Eu morei no bairro de Jurunas, nascido e criado em Jurunas. Aí começou a invasão na Terra Firme, que eu acho que não é uma invasão, é uma necessidade da pessoa de ter a sua casa. Ajudei na luta de inaugurar a Bom Jesus e a nossa luta maior era em relação a questão da moradia. Tivemos vários confrontos com a polícia. O pessoal fazia os barracos e o comando da polícia vinha derrubar, e a gente conversava, falava que era uma necessidade de moradia”.
Segundo João Batista, as terras pertenciam ao governo federal e eram vinculadas as universidades federais – hoje Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e Universidade Federal do Pará (UFPA) – , dessa forma, quem ia derrubar os barracos e prender os moradores era a polícia federal: “A universidade também mandava a polícia federal atrás da gente pra saber quem eram os cabeças da invasão, mas ai a gente falava que não tinha liderança, tinha uma comunidade que é o Centro Comunitário Bom Jesus e que foi fundado em cima da questão da moradia”.
Os moradores de Terra Firme criaram uma comissão e foram a Brasília se reunir com o ministro da educação da época: “Conclusão, se tornou uma terra firme e o mudaram o fim educativo da terra para o fim social, e ai, se tem fim social nós temos o direto da terra”. Mas a situação dos moradores da Terra Firme está longe de se resolver, o bairro tem cerca de 64 mil habitantes e a grande maioria não tem título de posse da propriedade em que vive: “Quem deu o título de posse foi a governadora Ana Júlia, mas só chegou a dar mil títulos e hoje tem cerca de 60 mil pessoas no bairro e a grande maioria não tem título de posse. Então, é uma luta que a gente vai continuar”. – afirma João Batista.
Moradora da Terra Firme e conselheira do PMTF, Sâmia Maria Queiroz, comenta as limitações que os moradores do bairro sofrem em relação ao lazer: “A gente não tem uma praça, acredita? A única praça que a gente chama de praça é a que fica na frente da igreja, que é lá na feira” – trata-se da Praça Olavo Bilac e da Igreja são Domingos – “Só que ela é limitada, ela é cercada, ela é totalmente cercada na frente da igreja. Então, se a igreja quiser fechar os portões e deixar fechada, como as vezes eles fazem, simplesmente fica fechada. De manhã tem muita gente que trabalha lá. A gente chama de shop chão, vendem mercadoria usada: sapato, camisa, de tudo você encontra lá… Então, a igreja abre a praça de manhã e essas pessoas trabalham lá de manhã. A tarde ela é limitada, tá fechada.”
Sobre a UIPP, a moradora afirma que um fator positivo foi a ampliação de alguns projetos da universidade junto à comunidade. O que no Rio de Janeiro chamamos de UPP Social “ficou fazendo parte de um outro projeto que a UFRA desenvolvia com a comunidade. Com a UPP esse projeto se estendeu mais” – informa a moradora. Por outro lado, a moradora também aponta problemas ligados à educação no bairro – a antiga delegacia, que funcionava perto da Igreja São Domingos, foi desativada em 2011 quando a UIPP foi instalada no bairro e passou a usar o prédio onde funcionava a Escola Celso Malcher: “Ai ocuparam a escola, por ser maior, e o local da delegacia está sem uso. Hoje em dia tá uma luta a respeito desse espaço, pois o governo tirou a escola para fazer a UPP e disse que faria um espaço pra as crianças desse colégio e até agora nada. Isso tem uns 5 anos mais ou menos. A escola ficou um tempo lá na igreja, depois saiu de lá. A igreja não permitiu mais que a escola ficasse lá, agora tá na Eletronorte. Não arranjaram um lugar nem pra escola e nem pra creche”.
O nome do bairro Terra Firme: luta pela memória
A resistência dos moradores do bairro de Terra Firme começou pela luta de ocupação do espaço: a área era alagada pelo rio Tucunduba e a travessia era feita através de pontes improvisadas pelos próprios moradores que, com o passar do tempo, foram aterrando o local e tornando-o efetivamente firme.
“O nome ficou Terra Firme porque era uma brincadeira contra o que na verdade o bairro passava. Uma brincadeira ao contrário do nome. Porque não era uma terra firme, era alagada” – conta a Sâmia Queiroz – “Fomos descobrir isso fazendo uma pesquisa, um mapeamento sobre o bairro com as pessoas mais velhas que estavam aqui na época da ocupação”.
João Batista chama nossa atenção para o conflito entre moradores e Estado na nomeação do bairro: “Na prefeitura tentaram mudar o nome para Montese, aí a galera aqui disse ‘Não!’. Fizemos um plebiscito e a comunidade votou a favor de Terra Firme”. Sâmia acrescenta: “Quem vem de fora fala Montese, em inscrição da internet tá Montese. Aí eu digo: ‘Não é Montese, é Terra Firme. Você não sabe, eu moro aqui’. Não é Montese. Ficou registrado, mas a gente chama Terra Firme. Como moradores, nós defendemos nossas raízes, porque tem gente que se apropria das coisas, inclusive da cultura, mas em relação ao nome do bairro a gente não permitiu que se modificasse”.
Os moradores de Belém, principalmente os moradores do bairro, se recusam a usar o novo nome e reivindicam a permanência do nome Terra Firme. Muito justo visto que foram eles que ocuparam as terras e tem sua história para contar. O nome Terra Firme diz respeito à história do bairro, à vivência de seus moradores, à memória afetiva deles com o lugar. O nome oficial do bairro é Montese desde 1996 e foi dado em homenagem a participação de soldados brasileiros na Batalha de Montese durante a 2a Guerra Mundial, em 1945. Os ônibus da cidade ainda circulam com o nome Terra Firme e nas buscas da internet localizamos o nome do bairro com sua forma popular entre parênteses: “Montese (Terra Firme)”. Quando os governantes vão entender que o nome de um lugar, dado pelo seu próprio povo, não cabe entre parênteses? Montese é um nome sem identificação direta com o lugar e seus habitantes, é, como já foi dito, um nome oficial concebido de forma autoritária pelo Estado.
Para saber mais sobre:
Chacina de 4/5 de novembro de 2014
Site:http://www.diarioonline.com.br/noticias/policia/noticia-308098-madrugada-de-execucoes-na-capital-paraense.html
UIPP
Sites:
http://www.agenciapara.com.br/
http://www.policiacivil.pa.gov.br/governo-do-estado-inaugura-duas-novas-uipps-em-vigia-de-nazar%C3%A9-e-irituia
Programa Pontos de Memória é vinculado ao Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)
Site: http://www.museus.gov.br/acessoainformacao/acoes-e-programas/de-memoria/programa-pontos-de-memoria/