Terreiros de candomblé e os trabalhos sociais em tempos de pandemia

Ialorixá Jaciara Ribeiro sente falta do contato pessoal - Foto Arquivo Pessoal

Desde o decreto municipal de Salvador proibindo atividades em igrejas e templos religiosos, em março, as celebrações públicas dos terreiros de candomblé também tiveram que ser canceladas, para evitar aglomeração de pessoas e disseminação do novo coronavírus. Mas, diferentemente da maioria das religiões, o culto aos orixás continua em atividade sem que precise da presença do público, porque suas principais consagrações ocorrem de maneira interna e restrita. Por se organizar como uma grande família e seu território ser considerado um organismo vivo, devido à unificação com a natureza, as adaptações ao povo de axé foram além da alteração do seu calendário festivo.

Como o cuidado com o sagrado não pode ser adiado, a limpeza dos objetos sacralizados e a manutenção do ilê (casa em yorubá) ficaram aos cuidados de poucos filhos de santo, que não fazem parte do grupo de risco de contágio e atuam em escala de revezamento.

O banho obrigatório ao adentrar a casa, além de purificar o corpo, serve também para evitar a transmissão do vírus, já as máscaras e álcool em gel passaram a compor a roupa de ração (indumentária própria para as atividades comuns dentro do terreiro), e a bênção ao sacerdote ou à sacerdotisa da casa, por enquanto se limita à voz e ao gesto, sem nenhum contato físico.

Contudo, o maior impacto para os candomblecistas tem sido a diminuição do vínculo afetivo, que diariamente era alimentado pela rotina dos encontros entre mães, pais e filhos de santo. A Ialorixá Jaciara Ribeiro, do terreiro Abassá de Ogum, na comunidade de Itapuã, contou que tem percebido um distanciamento maior entre seus filhos, devido ao momento de isolamento e de tristeza causado pela doença, e que todos os dias ela fala com eles através de aplicativo de mensagens, perguntando como estão, se precisam de algo:

“Eu tenho feito esse tratamento de acolhimento, de acolher essa sensação do medo, do pânico, embora eu não seja uma profissional, porque eu não sou psicóloga, nem psiquiatra, mas o orixá dá caminho pra gente mudar. Tenho feito banhos que acalmam, banho de Oxum, fui na cachoeira, peguei umas águas de cachoeira, comprei várias garrafinhas plásticas e preparei um banho, de manhã cedo eu peço a um filho vir aqui pegar, ele chega de Uber, entra, toma um banho, cuida do axé, enche uma quartinha, acende uma vela pra Exu e pronto, acaba, vai embora e leva o banho pra casa.”

Além desse acolhimento afetivo e espiritual, Yá Jaciara, que já trabalhava com ações sociais em seu bairro antes da pandemia, intensificou a ajuda, arrecadando alimentos e distribuindo cestas básicas, quentinhas, máscaras e material de higiene. “É preciso se reinventar com esse novo modelo de vida que o país está passando, dá proteção, não adianta eu me cuidar e não cuidar do outro”, concluiu.

Quem também revela as dificuldades devido ao distanciamento dentro do terreiro é a Ialorixá Iara D’Oxum, zeladora do O Ilê Axé Tomin Kiosise Ayo, na comunidade de Cajazeiras. Ela conta que seus filhos tiveram que aprender a lidar com o contato virtual, e que através de um grupo por aplicativo, ela conta com o apoio de dois filhos que são psicólogos e que tem dado assistência às pessoas da casa.

Ialorixá Iara D’Oxum. Crédito: Arquivo pessoal

Enfatizando sempre que é preciso ter religião com responsabilidade, Yá Iara conta: “Nós temos uma associação, Pássaro das Águas, onde a gente está arrecadando cestas básicas e dividindo na comunidade, a gente oferece pão, de segunda a sexta, a partir das 17h30, minha casa toda dá cinco, dez reais e a gente distribui os pães, álcool gel e máscaras.”

Ela percebe que sua comunidade externa tem sofrido muito com a falta de renda e desemprego, e agradece muito pelo compromisso dos seus filhos com a casa de axé e com associação vinculada a ela. Ainda que cada terreiro tenha a sua nação, e que cada casa dessa nação tenha a sua identidade, é possível identificar a concordância nos cuidados das sacerdotisas com seus filhos e filhas de santo, perceber a saudade em comum, tão dolorida pelo distanciamento, e vê os rituais em pró do coletivo, sempre em busca de proteção e saúde física, psicológica e espiritual.

As duas Ialorixás concordam que ainda não é o momento de retomar as atividades com o público externo, e que seus terreiros ainda irão continuar por um longo tempo com o mínimo de pessoas com acesso permitido, de forma escalonada. Elas celebram a possibilidade de se apropriarem cada vez mais das redes sociais para manter os vínculos, e estendem inclusive esse contato virtual para atendimentos, jogos e consultas.