Hoje, 14, a favela da Rocinha, zona sul do Rio de Janeiro amanheceu em meio a um intenso tiroteio, com ao menos um morto e três feridos. Em meio ao caos, uma profissional da saúde que trabalha na Rocinha escreveu um texto de revolta com toda essa violência em meio a uma pandemia. Seu nome, idade e cargo não serão mencionados, a pedido da profissional. Segue abaixo o relato.
“Eu não posso sair de casa, não posso ir à praia, e agora com esse tiroteio, fico sem luz. Eu odeio isso aqui.”
O baile acontecia, o resto da comunidade dormia. Muitos tiros. Muitos disparos. Granada. Parece a guerra de novo! O que tá acontecendo? É na Vila Verde! É na Cidade Nova, foi no Boiadeiro! É na Rocinha toda. Muito policial, muito policial. Não sei o que tá acontecendo. Tô sem energia! Aqui também. Aqui também. Estamos todos. Estou sem sinal de internet, só com a banda larga. Mãe! tô passando aqui! O salão novo tá todo esburacado! Moto, carro, casa, tá tudo esburacado! Ih, acabei de acordar, tomei remédio para dormir e acordei agora sem energia, aconteceu alguma coisa? Aconteceu sim! Vídeo-de-tiroteio. Meu deus! Você viu como tá a Clínica da Família?
Toda esburacada, fuzilada. É domingo e o complexo da UPA, da Clínica da Família e do CAPS amanheceu pipocado. Computador com tiro de fuzil, balas em cima de documentos de saúde. Os profissionais da Clínica da Família e do CAPS não trabalham dia de domingo, mas e a UPA? Não conheço ninguém da UPA para saber se ficaram bem. As cadeiras do consultório com buraco, no lugar do encosto das costas. O refeitório com muitos buracos.
Eu não moro na Rocinha. Sou uma profissional da saúde branca que moro na Zona Sul do Rio de Janeiro. Mas e as pessoas com quem trabalho que moram lá? Eu odeio isso. E as pacientes que cuido? Como faço para falar com cada um? Com cada uma? Já sei! Tem pelo menos um grupo de WhatsApp de paciente que posso mandar mensagem. Mas nem todo mundo me responde! Tenho que mandar para cada uma?
E amanhã? Como será trabalhar na clínica furada? Não podemos abrir em vermelho, porque no protocolo diz que para ser classificada com vermelho de sangue, só se tiver tido tiro na última hora sem parar. Desde que entrei, nunca vi a clínica fechar. Temos de trabalhar. Polícia subindo o morro, eu fazendo visita domiciliar. Fogos, fogos, fogos. Desço o morro e passo por três bocas. Eu e as agentes comunitárias morrendo de medo e abraçadas. Fogos, fogos, fogos. Tá tudo bem. Eu vou dormir fora, e os que ficam? Não posso dizer para virem aqui para casa, não cabe todo mundo e o deslocamento ia ser ainda mais perigoso. Melhor ficar em casa. Fique em casa. Rocinha morre de Corona ou de polícia?
Polícia morre também. Melhor não ter polícia. Polícia dá medo. Bandido dá medo também. Pelo menos conheço os vizinhos e familiares. Nunca me desrespeitaram, nunca me assediaram e me chamam de tia. São uns magrinhos. Tem fuzil que é maior que os meninos. Eles descansam a cabeça na hora do banzo no fuzil. Tem fuzil estampado. O preto básico, o estampa floresta e o estampa flamengo.
Esse tico de gente- polícia e os meninos- estão no meio de uma imensidão de gente. Em casa. Estão em casa. A Rocinha inteira está em casa. Corona não fez a Rocinha parar quieta, mas tiro faz. Não sai de casa. Fica no banheiro abraçada com os filhos, porque o azulejo é mais grosso. Rocinha faz isolamento social com combate entre polícia e os meninos.
E amanhã? Como vai ser trabalhar? Disseram que da última vez, no dia seguinte já haviam colocado gesso. Vai ser terrível ver os buracos, me disseram, mas com o tempo você se acostuma.
O espaço amplo da clínica no meio da Rocinha, é uma lembrança diária de direito civil
conquistado, o SUS. Lembrança de que o povo pode ter voz. Em meio a tantas casinhas
apertadas, a curva do S da Rocinha é ocupada pelo quase colosso complexo do SUS. É memória física e fixa de que o povo tem direito de viver. Mas somos frágeis, nossa estrutura de latão, agora toda esburacada, é lembrança também de que as vidas pretas podem não importar tanto. Corpos favelados podem ser esburacados mesmo quando estão sendo cuidados.
É tiro e é pânico dentro de casa. É tiro e é buraco na alma. É tiro no SUS. É tiro no povo da Rocinha.