Todos os olhos estão nas favelas

Morro da Providência, a mais antiga favela do Rio (Créditos: Maurício Hora)

I – COMO TUDO COMEÇOU.

Embora o foco do presente artigo seja o problema de uma intervenção federal, que tem cunho exclusivamente militar, e a forma avassaladora como atingirá nossas Favelas e Periferias, certas peculiaridades e argumentos precisam ser destrinchados, para melhor compreensão do processo histórico que deu origem ao que vivemos atualmente.

A história do surgimento dos cortiços, suas demolições e da reforma urbanística é fundamental para que se possa entender o nascimento das favelas.

Com o fim da guerra do Paraguai, a expansão de vários setores da economia, provocou um boom manufatureiro.

As alforrias, somada a imigração em massa dos europeus, ocasionaram um aumento exponencial da população do Rio de Janeiro, acarretando a superlotação dos prédios antigos do centro, principalmente dos que se encontravam em estado mais precário, originando os cortiços.

Os cortiços eram considerados os maiores focos de infecções sanitárias e os grandes propagadores de “epidemias sociais”, refúgio de capoeiristas e vagabundos, severamente criminalizados nesta época, que, segundo as elites, empesteavam moralmente a cidade.

Registre-se que mesmo com a expansão dos transportes públicos (1860-1870), a população pobre não tinha como arcar com os custos deste, o que fazia com que se apinhassem nos cortiços.

A primeira República Brasileira (1889-1930) instaurou uma ordem liberal, mas profundamente antidemocrática, reforçando, assim, a natureza autoritária das medidas higienistas.

Durante o mandato de Barata Ribeiro, como prefeito do Distrito Federal (hoje o Estado do Rio de Janeiro), apesar do pouco tempo que durou, pois foi logo afastado, foram tomadas medidas para remodelar a cidade, – utilizando-se de meios de natureza racista e higienista – com o intuito de erradicar os cortiços, como, por exemplo, a demolição do célebre cortiço Cabeça de Porco em 1893.

Em verdade o nascimento e o crescimento das favelas foram impulsionados pela reforma urbanista do RJ, que por sua vez, era orientada por uma política higienista que foi eliminando os cortiços uma a um, sempre com base nas ideias de insalubridade, propagação de epidemias e marginalidade, retratando o pensamento das elites.

Aqueles que sobreviveram às diferentes interdições legais durante o século XIX não resistiram as sucessivas reformas urbanas do século XX, tampouco ao processo de valorização imobiliária.

Algumas pesquisas apontam no sentido de que certas favelas se desenvolveram a partir da estrutura dos antigos quilombos periurbanos, que se formaram em torno da Capital durante a metade do século XIX.

É certo que o termo favela provém da guerra dos Canudos (1896-1897), pois na região do sertão do Estado da Bahia existia um morro chamado Favela (Jathropa phyllaconha).

Ressalte-se, ainda, que as pesquisas sobre o surgimento das primeiras favelas revelam que, desde 1897, o governo Municipal já se esforçava para erradicar os barracos do morro do Santo Antônio.

A reação da população foi quase imediata, pois os moradores obtiveram o apoio dos Oficiais do Exército.

Em 3 de fevereiro de 1898, o sucessor de Moreira Cezar, Affonso Pinto de Oliveira interveio diretamente junto ao Ministério da Guerra em favor da permanência dos moradores no Morro Santo Antônio.

Assim, os soldados que voltavam da guerra se estabeleceram, com a tolerância do exército, no morro da Providência que, em alusão a esta campanha militar, passou a ser conhecido por morro da Favella..

A partir da segunda década do século XX, o termo passou a designar todas as habitações precárias, do mesmo tipo, espalhadas nos diversos morros da cidade. Os habitantes expulsos dos cortiços passaram a habitá-las. O surgimento das favelas é resultado direto da política higienista contra os cortiços e, obviamente, do pensamento das elites que não aceitavam conviver com pessoas negras e pobres.

Faz-se necessário pontuar que, logo após a abolição dos escravos, parte deles se viu livre, porém, sem condições de subsistência, pois sua mão de obra não foi aproveitada pela sociedade. O Estado preferiu apoiar a imigração em massa de europeus para substituir a mão de obra escrava, influenciado pelas ideias das elites que desejavam purificar a raça com um branqueamento da população.

Em verdade, tudo que provinha do negro era severamente criminalizado. Exemplo disto são a capoeira e o espiritismo. As favelas também abrigavam negros e a ideia de marginalidade jamais foi dissociada dela

Ressalte-se que o urbanismo foi pouco a pouco implementando uma concepção mais sistemática da cidade. Essa nova concepção, – orientada por um pensamento higienista e elitista – influenciada pela consolidação do mercado imobiliário no Rio de Janeiro, visava uma divisão espacial que contribuía para o acúmulo de capital. Dentro deste contexto, as favelas não tinham mais direito à cidade.

O plano urbanístico abordou de forma detalhada o problema das favelas.

Esse plano foi o primeiro texto oficial a estabelecer um conceito para as favelas. A favela passou a ser definida como uma espécie de cidade-satélite de formação espontânea, que escolheu, de preferência, o alto dos morros, composta, porém, de uma população meio nômade, avessa a qualquer forma de hygiene.

           As elites consideravam as favelas “chagas sociais”, estabelecendo, desta forma, segundo Rafael Gonçalves, um conceito que se revela como uma espécie de status jurídico sui generis.

A definição da Favela como cidade autônoma, com sua própria organização social, contudo, totalmente dependente economicamente do resto da cidade, criou um conceito dentro do qual as favelas ocupam um espaço dependente das cidades, mas permanecem completamente distanciadas delas, uma espécie de enclave urbano[i].

Faz-se necessário acrescentar que desde aquela época a definição de favela sempre teve cunho pejorativo e dissociado da cidade, como se não fizessem parte desta. Saliente-se que esta espécie de conceito, associado a ideia de marginalidade, permaneceu enraizado no seio de uma sociedade capitalista, elitista, racista e fascista.

Frise-se, por oportuno, que foi o médico Mattos Pimenta que deu início a uma campanha radical contra as favelas e sua expansão no tecido urbano, salientando o aspecto estético do problema. Afirmava ser necessário levantar-se uma barreira prophylática contra a infestação das lindas montanhas do Rio de Janeiro, pelo flagelo das favelas, – consideradas lepra da esthética, chagas do Rio de Janeiro –  que surgiu no morro entre a Estrada de Ferro Central do Brasil e a Avenida do Cais do Porto e foi se derramando por toda parte.

A própria história das prisões no Brasil demonstra o quanto os negros eram odiados e criminalizados, tanto na época do Império, como na da Primeira República, considerando o tratamento dispare que era concedido às diversas classes de presos: a primeira, composta por negros, vagabundos e capoeiristas, a seguinte, integrada pelos considerados não perigosos e por menores. Aos primeiros o tratamento exclusivamente retributivo e aos segundos as vertentes ressocializadoras.[ii]

II – O DIREITO PENAL E O CONTROLE DAS CLASSES CONSIDERADAS CRIMINOSAS.

Faz-se indispensável pontuar que, muito antes dessa época, os EUA já redobravam esforços para coibir o uso e o comércio de certas substâncias, não só internamente, mas internacionalmente, utilizando argumentos falaciosos e racistas, defendiam o mal causado pelo uso de certas substâncias e o perigo que as pessoas (negras, chinesas, mexicanas e etc) que utilizavam certas substâncias representavam para a sociedade.

A sociedade americana defendia um discurso hipócrita, falso moralista que pregava uma espécie de moralidade sóbria. Contudo, o discurso adotado pelos EUA servia para mascarar suas verdadeiras intenções.

A Europa era principal produtora de ópio, cocaína e seus derivados. Por outro lado, os EUA detinham o controle das indústrias farmacêuticas e “médicas”. Desta forma a proibição do uso e comércio de tais substâncias eram necessárias ao crescimento financeiro destas indústrias[iii].

Tal fato é tão evidente que, atualmente, a indústria farmacêutica fabrica um remédio para dor que é composto por 500 mg de paracetamol e 30 mg de fosfato de codeína, substancia derivada da cocaína.

O que deve ficar claro, neste momento, é que diversas substâncias foram tornadas ilícitas por questões raciais e financeiras, inerentes ao capitalismo.

No Brasil, com o fim da Ditadura Militar, –  que foi amplamente apoiada pelos EUA – o movimento das Diretas Já, a Constituinte e, posteriormente, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, nossa Democracia ressurgiu para assegurar direitos e garantias fundamentais, mas sempre teve como base, em termos de política criminal, a “ideia”, importada dos EUA, da necessidade de uma verdadeira guerra às drogas.

O grande problema, dentro do contexto da proibição, é que nosso sistema penal é operacionalizado através de uma estrutura extremamente seletiva[iv].

Esclarecendo melhor, pode-se afirmar que a criminalização de determinadas condutas passa por dois momentos necessariamente seletivos.

O primeiro se verifica no momento que o Legislativo produz leis que criminalizam determinadas condutas, –  a expressão utilizada significa dizer que através de uma lei penal determinadas condutas passam a ser consideras criminosas e penas são infligidas a quem as pratica –  de maneira necessariamente seletiva, justamente porque o Legislativo promulga leis selecionando condutas que, por motivos políticos, são consideradas criminosas.

Neste ponto, faz-se necessário citar o Professor Nilo Batista:

“Todo crime é um crime político”.

O segundo, igualmente cruel, se materializa no momento que a Polícia Militar ou Civil escolhe suas “vítimas” nas camadas mais pobres da população, preocupando-se em combater a criminalidade tosca, produz torturas, mortes e prisões ilegais[v].

A proibição do uso e do comércio de drogas tornadas ilícitas é a maior forma de controlar e expurgar da sociedade pessoas consideradas, por uma parte da sociedade, indesejadas. O que significa dizer que a guerra às drogas é a forma mais cruel de controle das classes consideras “perigosas”.

Sinceramente, é lamentável que este pensamento predomine na sociedade, mas é necessário expô-lo para uma exata compreensão do momento pelo qual passamos.

A semente do racismo, do higienismo e do fascismo cresceu e encontra-se disseminada no seio da sociedade até a atualidade. Desta forma, as favelas e periferias continuam sendo alvo de muito preconceito e ódio, sendo, ainda são consideradas um flagelo social que enfeia a cidade, e em consequência, totalmente marginalizadas.

O ponto nevrálgico da questão é simples, temos um sistema penal operacionalizado por uma estrutura seletiva, dentro de uma sociedade elitista, classista e preconceituosa que enxerga as Favelas como chagas sociais –  assim como no Brasil Império/ 1ª República – , o que faz com que o direito penal –  que é instrumento de contenção do poder punitivo, mas é utilizado de forma inversa –  passe a exercer a função de controle social, ou seja, o sistema penal exerce o controle das classes mais pobres, através do Direito Penal e em nome da “Defesa Social”[vi]

A cultura e as músicas vindas das Favelas são criminalizadas, assim como a capoeira e o espiritismo foram na época do Brasil Império/República, ou seja, o batuque da favela (funk) é tão criminalizado e marginalizado como os tambores e batuques que soavam nas senzalas, enquanto os escravos cantarolavam suas cantigas.

A cultura, por sua vez, é extremamente ignorada. A grande mídia e as agências policiais transmitem uma imagem pejorativa, associada à marginalidade e ao crime, que só mostra os problemas e agruras que passam os moradores e a suposta periculosidade de uma “garotada” que encontrou guarida no comércio ilegal de drogas tornadas ilícitas.

Contudo, só quem mora ou frequenta uma favela entende a cultura a qual me refiro. Existe um conjunto histórico e cultural que possibilita a percepção de que há um grande sentimento de amor e solidariedade entre todos, que, se estende também a quem “vem de fora”.

A cultura da favela trouxe o samba, que foi muito marginalizado no começo, o funk consciente, da década de 90, que demonstrava a realidade favelas. Muitos MC’s incorporavam personagens para falar da “guerra”, outros destacavam a violência vivida por eles. O Rap brasileiro também veio da favela e contém letras que falam de racismo, violência policial e prisão.

Esses MC’s e rappers que incorporam personagens para contar histórias de guerra entre quadrilhas, falando de violência, armas, prisão e da policia, lembram-me Tupac ShaKur, mais precisamente quando lançou um dos seus maiores sucessos, a música chamada: “ All Eyez On Me”[vii].

Os moradores sofrem quando há briga entre quadrilhas, intervenções e operações, pois são disparados tiros indiscriminadamente, fazendo com que crianças, mulheres, homens, correm para se proteger. Até os estabelecimentos comerciais cerram as portas com medo de balas perdidas.

Frise-se que brigas entre quadrilhas não se sujeitam à Lei, pois aquelas pessoas já estão a margem dela e possuem suas próprias regras. Contudo, como já dito, trata-se de uma briga que, por sua própria natureza criminosa, não tem o aval do Estado, diferentemente das operações policiais realizadas dentro da Favela, nas quais o próprio Estado deve assumir a posição de garantidor, respeitando a Constituição, bem como as leis infraconstitucionais.

Registre-se que tais operações visam, – refiro-me ao discurso declarado e não o verdadeiro – apreender armas, drogas e comerciantes ilegais de drogas tornadas ilícitas. Refiro-me a pessoas e não a rótulos, por isto não uso a “etiqueta” (palavra) traficante. A palavra etiqueta está sendo adotada fazendo referência a teoria da labeling ou do etiquetamento[viii] – o uso de palavras que se transformam em etiquetas reforça o pensamento da burguesia, produzindo um efeito que afeta não só os citados comerciantes ilegais, mas  todos moradores de Favela, que acabam sendo marginalizados.

O Estado já vinha utilizando “o Exército” para realizar operações conjuntas com a Polícia Militar, o BOPE (tropa de elite da PM, especialista em operações em favelas) e a Polícia Civil, que caracterizam verdadeiras intervenções militares, antes que a Intervenção Federal, de cunho exclusivamente militar, tivesse sido “declarada”.

Em uma operação no Complexo do Lins, a polícia logrou êxito em apreender cerca de dez fuzis. Diante do insucesso da operação, considerando-se também o contingente de Policiais Militares e Civis envolvidos e o uso do Exército, o atual Secretário de Segurança atribuiu o fracasso da mesma a um vazamento de informações, segundo ele, constatado em uma ligação que teria sido interceptada.

Não é só! Diversas operações do mesmo tipo já foram realizadas e mostraram claramente seu insucesso. Cabe ressaltar que diversas incursões em favelas se traduzem em uma verdadeira matança de moradores, adultos, crianças, participantes do comércio ilegal de drogas tornadas ilícitas[ix] e policiais.

Faz-se necessário lembrar que em uma dessas operações conjuntas, que envolveram o exército,17 pessoas foram assinadas em um baile funk, realizado em uma Favela de São Gonçalo.

Desde o começo da implementação das unidades pacificadoras, – que caracteriza uma verdadeira militarização das Favelas –  a maioria dos juristas especialistas em Criminologia e Política Criminal já apontavam no sentido de que o projeto seria um insucesso, servindo, tão somente, para piorar a vida dos moradores. Foi exatamente o que ocorreu! Tiroteios em diversos locais e diversas violações de direitos e garantias fundamentais o tempo todo. O que antes acontecia com menos frequência (operações eram feitas de forma espaçada), passou a fazer parte do cotidiano dos moradores.

O comércio ilegal de drogas se instalou (também) nas Favelas devido a total ausência do Poder Público, ausência de escola pública de qualidade, de moradia, saúde e lazer, jamais por vontade dos moradores.

Quando uso a palavra “também”, refiro-me ao comércio ilegal de drogas realizado fora da Favela, no Leblon, em Ipanema ou em qualquer outro lugar, que não recebe o mesmo tratamento que a guerra às drogas dentro das Favelas.

Há longos anos o Estado vem privando os mais carentes de educação digna, cultura, saúde e moradia. As Favelas foram abandonadas a própria sorte há muitos anos!

Aparecem, tão somente, como verdadeiras vilãs, inimigas número 1 do Estado, de tal forma que, sua falaciosa periculosidade, unida aos furtos e assaltos na cidade, fora utilizada como argumento apto a embasar uma Intervenção Federal, de cunho exclusivamente Militar.

No Rio de Janeiro há uma espécie de pensamento que predomina no senso comum como se todos os criminosos estivessem nas favelas e, consequentemente, o crime fosse produto delas.

III – TODOS OS OLHOS ESTÃO NAS FAVELAS: A INTERVENÇÃO MILITAR E A FAVELA.

O Decreto 9.288 de 16 de fevereiro de 2018, foi embasado no artigo 34, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil.

Faz-se necessária uma análise mais aprofundada da CRFB, no que concerne a expressão “grave comprometimento da ordem pública”,   primeiramente, deve ser destacado que o conceito de ordem pública é vago e impreciso, portanto sua interpretação deve ser feita de forma restritiva, respeitando os princípios da taxatividade e da legalidade estrita.

Assim para que possa restar caracterizado um grave risco de comprometimento da ordem pública, não basta a justificativa do aumento de assaltos e furtos na cidade, muito menos o argumento de que as “favelas estão dominadas por traficantes perigosos”.

No Rio de Janeiro sempre existiram assaltos, furtos, tráfico. Ocorre que a grande mídia fez da violência ocorrida no carnaval um grande circo midiático. Notícias de brigas, furtos e assaltos receberam um status maior do que têm e uma gravidade aumentada de forma extremamente sensacionalista.

Nada melhor para satisfazer uma classe média aterrorizada pela mídia, uma elite burguesa que defende a odiosa expressão “bandido bom é bandido morto”, tem ódio das Favelas e, por pura ignorância no exato sentido da palavra, defende a volta da ditadura militar, como uma Intervenção Federal, de natureza exclusivamente Militar.

Não é exagero destacar que quem defende a medida não vai assistir seu filho de cinco anos, vestido com uniforme escolar, ser revistado por um policial ou por alguém do exército. Não vai ter que se esconder debaixo da cama (quando a família tem uma) por causa dos tiroteios, também não vai precisar sair para trabalhar enquanto tem tiro a esmo, enfim, como sempre, dane-se a Favela e os moradores.

O que importa é agradar aqueles que pensam de acordo com um senso comum classista, preconceituoso, e a grande mídia, verdadeira receita mágica para aumentar a popularidade desse governo claramente ilegítimo.

É indispensável ressaltar a obscuridade concernente aos motivos políticos que ensejaram a medida.

Por um lado, tem-se uma parte da população fiel ao Lula, que não deseja sua prisão (não se está tentando discutir política). É absolutamente inegável que o Decreto simplesmente nasceu depois que uma determinada Favela pendurou uma facha, em sua entrada, com os dizeres: “Se o Lula for preso, o morro vai descer”. Em outro giro, temos um governo que, apesar de ilegítimo, vai tentar se reeleger a todo custo.

Essa Intervenção tem vários aspectos que precisam ser analisados com muito cuidado.

O mais preocupante no momento é a forma como serão expedidos os mandados de busca e apreensão.

Vejam: não existe mandado de busca e apreensão coletivo, não há previsão legal no Código de Processo Penal. O mandado de busca e apreensão tem razões e formas estabelecidas em lei, para poder ser expedido.

O artigo 240 do Código de Processo Penal, em seu parágrafo 1º, define as razões que o autorizam, nas alíneas “a, b, c , e, f, g, h” e §2.

O artigo 243, do mesmo diploma legal, demanda uma forma preestabelecida nos incisos I, II, III e parágrafos 1º e 2º, para sua expedição. Esta forma não está estabelecida por mera burocracia! No processo penal forma é garantia, ou seja, o que estou afirmando é que a forma preestabelecida deve ser respeitada sob pena de violação da inviolabilidade de domicílio, dos princípios da taxatividade e legalidade estrita.

Essa espécie de mandado de busca e apreensão inventado, que recebeu o nome de coletivo, é ilegal e inconstitucional. Na prática, podemos chama-lo de “pé na porta autorizado”.

Segundo o que foi noticiado na mídia, os mandados serão nominais. Contudo, faz-se necessário observar que mesmo assim, não pode abranger uma localidade, pois de acordo com o artigo 243, inciso I, do Código de processo penal, o mandado deve “indicar o mais precisamente possível a casa em que será realizada a diligência, ou seja, se o mandado não respeitar a forma prevista no referido artigo, será igualmente ilegal e inconstitucional. Portanto, se o interventor pretende fazer um bom trabalho deve usar estratégias de inteligência e os mandados de busca e apreensão devem respeitar a lei, devendo ser expedidos um a um, cada um com o nome da pessoa, alvo do mandado, e com seu endereço.

Outro fato preocupante, refere-se à declaração, noticiada pela mídia, de que o exército não deseja “outra comissão da verdade”. O que eles querem dizer? Querem uma espécie de imunidade para matar? Será que métodos utilizados na Ditadura militar irão se repetir em uma Democracia? Porque fazem questão que possíveis crimes praticados sejam julgados pela Auditoria Militar?

A revista de crianças menores de 12 anos também merece ser debatida. De acordo com o artigo 2º do Estatuto da Criança e Adolescente, considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

A criança menor de 12 anos não comete sequer fato análogo a crime e, muito menos, crime, portanto não há como fundamentar a revista em uma situação de flagrância, sem que os artigos 228 da Constituição da República Federativa do Brasil e 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente sejam violados.

Frise-se que de acordo com o artigo 3º do Estatuto da criança e do adolescente, as crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

De acordo com o parágrafo único, os direitos enunciados Estatuto da Criança e do Adolescente aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem (incluído pela Lei nº 13.257, de 2016).

             Desta forma, não há base legal apta a endossar tais revistas.

“The Hate U Gave Lil’ Infants Fucks Everyone”[x]

Tupac SkaKur

 Ad argumentandum tantum, será que crianças uniformizadas, que estudam em bons colégios, tais como: São Bento, Santo Inácio, Cruzeiro e etc, serão revistadas pelo Exército ou pela polícia?

Levando-se em consideração os dispositivos citados, bem como a Constituição, pode-se afirmar que a revista de crianças fere os artigos 1º, inciso III (dignidade da pessoa humana), o caput do artigo 5º ( mais precisamente o princípio da isonomia) e seus incisos X, XLI, da Constituição da República Federativa do Brasil.

Outro problema que deve ser abordado é este procedimento que consiste em tirar foto dos moradores e de suas identidades. Tal estratégia me lembra a Ditadura. Não há previsão legal: é extremamente arbitrária e autoritária.

Definitivamente isto significa o assassinato da presunção de inocência e do princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere).

Contudo, como ainda passamos por um momento de incertezas, será necessária muita calma, para que os ânimos não sejam acirrados.

Uma Audiência Pública com o Interventor, representantes de Favelas, criminologos, criminalistas e ONGs, seria a medida ideal para que diversos pontos pudessem ser trazidos à baila e, assim, chegarmos a um “denominador” comum.

Por enquanto, o Interventor está passando uma imagem de serenidade e estudo de estratégias

Termino este artigo com uma espécie de apelo, citando as palavras do Professor Nilo Batista que –   se referindo ao Marechal Deodoro e a uma carta escrita por ele, dirigida a Princesa Isabel, antes da abolição, pedindo que o governo imperial não fizesse os soldados serem “  encarregados de captura de pobres negros que fogem à escravidão ou porque  vivam já cansados de sofrer os horrores, ou porque um raio de luz de liberdade lhe tenha aquecido o coração e iluminado a sala” –  declarou:

“Que o general se inspire neste exemplo e não deixe que o Exército invista contra os quilombos urbanos do neoliberalismo”[xi].

Ana Paula Lomba.

Advogada Criminalista e especialista em Criminologia e Direito Penal pela Faculdade Cândido Mendes.

[i] [i] GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas (PUC-Rio), 2013.

[ii] DUQUE ESTRADA, Rodrigo. Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. Renavam, 2005.

[iii] VALOIS, Luís Carlos. O Direito Penal da Guerra às Drogas. D’ Plácido, 2016.

[iv] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Direito Penal Máximo x Cidadania Mínima. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado.

[v] ZAFFARONI, Raúl. Direito Penal Brasileiro – I. Renavan, 2003, 3ª ed.

[vi] O discurso da Defesa Social pode ser compreendido como aquele que usa o direito penal para conter determinada classe social, através de diversos argumentos que compõem o citado discurso –  que vem sendo disseminado há anos na sociedade –, utilizado pelas agências policiais e pela grande mídia  para disseminar o medo na sociedade, como se estivéssemos realmente vivendo “ um caos criminoso”.

[vii] A tradução literal do nome da música é: “Todos os olhos estão em mim”.

[viii] A Teoria do Etiquetamento aborda o desvio de forma a considerar que o primeiro (desvio/crime) deve ser estudado de forma heterogenia, ou seja,  o estudo dos motivos que levaram ao desvio primário só pode ser feito de acordo com cada caso, por sua vez este desvio recebe uma etiqueta (labeling), atribuída por terceiros, o que faz com que aquela pessoa acabe assumindo o papel de desviado e a etiqueta que lhe foi atribuída.

[ix] As drogas de uso e venda proibidas não nasceram com esta natureza, o status de drogas ilícitas foi imposto pelo EUA, de forma a internacionalizar a proibição, obrigando o resto do mundo a adotar sua posição proibicionista, tendo em vista o poder financeiro que sempre deteve.

[x] A tradução literal da frase é:” O ódio que você passa para as crianças fode todo mundo”

[xi] Tijolaço.com.br. “ Nilo Batista: em 94, o Estado não entregou a Segurança ao Exército”., por Fernando Brito, em 24/02/2018.