Trabalho de formiga

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Retiro meu voto de feliz ano novo, feito na semana passada. Não haverá ano novo; há 2020, um aprofundamento do anterior, não um ano novinho em folha como gostaríamos. Informações que apontaram aumento de 9,5% nas vendas de natal, assinadas pela Associação de Lojistas de Shoppings, a Alshop, eram pura mentira, por exemplo. Um sinal de que não vai mudar nada com a virada do ano.

Do alto do encalhe de produtos estocados, donos das lojas de shopping centers promoveram enquete própria e informal, que acusou queda de até 30% no movimento natalino. Nós, que estivemos neles e também em supermercados no período pesquisado, sabemos de que lado está a verdade.

Ora, se a realidade pode ser manipulada de maneira tão descarada, o que não se poderá mentir no ramo das previsões? Sob a varinha mágica do astrólogo do reino, toda referência ao futuro imediato nascerá furada, será fruto da astrologia do ódio embalada na escatologia rasteira do seu ideólogo-mor, o bruxo da Virgínia, nos Estados Unidos.

Não havendo ano novo, o que esperar de 2020? De dentro do governo não vêm previsões, por enquanto. Talvez comecem a soltar comunicados na próxima semana com chutes aleatórios baseados em vontades pessoais de agradar o chefe. Ministros deste governo primam pelo puxa-saquismo despudorado.

De minha parte, antevejo aumento das mortes de civis por policiais e milicianos a partir deste mês, como reflexo imediato do perdão natalino presidencial aos policiais condenados que cumpriam pena. Obviamente a medida representa incentivo e encorajamento aos criminosos para redobrarem seus esforços por novos recordes de violência policial no país.

A jornalista Teresa Cruvinel chamou a atenção para dados concretos que estão no orçamento deste ano: a fiscalização trabalhista e o programa Minha Casa Minha Vida perderão metade dos seus recursos. O Pronatec terá corte de 97%, “vale dizer, vai acabar”, escreveu em artigo recente. A verba do Bolsa-Família também encolheu e pode acabar o programa Farmácia Popular.

Fora do orçamento, o governo anunciou há pouco o aumento de 70% nos índices dos empregos temporários, alardeado logo pelo O Globo em manchete de capa. Não é avanço, senão dos empregos precários, com exploração da mão-de-obra em níveis anteriores à legislação trabalhista implantada na era Vargas, há mais de 70 anos. Mas está na primeira página em letras garrafais iludindo os ingênuos ainda crentes no governo e nas suas intenções.

Outra jornalista, Eliane Brum, residente em Altamira, no Pará, acompanha de perto o massacre diário de lideranças de populações indígenas, quilombolas e outros perseguidos por grileiros e exploradores da floresta por madeira ou atividade agrícola e acusa a drástica redução dos recursos do Estado na Amazônia como incentivo ao extermínio sempre combatido.

Escreve ela que na época de festas natalinas do que chama de “sala de jantar” lideranças civis abandonam suas famílias para esconder-se da facilidade com que são caçadas durante o recesso das instituições. Esses brasileiros se tornam por um breve período do ano alvo ainda mais vulnerável, enquanto outros brasileiros aproveitam as festas, celebram o nascimento de Jesus e a passagem do ano.

No Rio de Janeiro, o campeão nacional da violência policial, 2019 foi o ano em que se registraram cinco mortes diárias por tiros da polícia em operações que o comando da PM rotula como planejadas com antecedência e executadas com rigor estratégico e fieis às informações levantadas pela inteligência policial.

A dor dos parentes das vítimas e seus relatos desmentem isso, assim como falsos autos de resistência e acusações infundadas de porte de armas e drogas por estudantes, trabalhadores ou atletas negros e pobres. Cinco mortos todos os dias do ano passado!

Ainda no começo de sua gestão, há um ano, o governador Wilson Witzel foi enfático sobre o modelo de atuação da sua força policial contra criminosos: “Serão caçados nas comunidade. E aqueles que não se entregarem, não tirarem o fuzil do tiracolo, serão abatidos. Porque não merecem viver aqueles que atiram contra o povo e contra a população do estado do Rio de Janeiro”.

Está claro que o governador se referia aos bandidos, mas se a polícia matasse cinco deles a cada dia, acho que teria acabado com a criminalidade no estado. É um raciocínio perverso, porque se todos os assassinos fossem mortos não sobrariam inocentes, só mais assassinos. Para fechar o raciocínio, se “não merecem viver aqueles que atiram contra o povo”, o que fazer com policiais que disparam armas contra o povo?

Estudo de âmbito internacional diz que o Brasil é um dos países onde a população tem mais medo das polícias no mundo, ao lado de alguns dos piores exemplo africanos e asiáticos. Se este dado não é suficiente, vamos à pesquisa Datafolha sobre o tema: em abril passado, metade dos brasileiros tinha medo da polícia e 47% confiavam nela.

Em julho de 2017, outra pesquisa apontava que um terço do brasileiros tinha tanto medo da violência quanto da polícia. Em novembro do ano anterior, pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que 70% dos brasileiros achavam que a polícia cometia excessos de violência em suas ações; mais da metade dos pesquisados em nível nacional temiam violências por parte tanto da civil quanto da PM. As duas instituições, no entanto, faziam um bom trabalho, na opinião de mais da metade dos pesquisados.

Num cenário desses, ainda sem as consequências funestas da reforma da previdência para a população trabalhadora, em que os índices da economia patinam, a desindustrialização cresce, as pautas ambientais insistem na regressão que preocupa boa parte do planeta, em que a política externa é simplesmente assustadora, o que pode andar para a frente?

A retomada do desenvolvimento econômico não virá, a não ser para os mesmos que comandam a economia e põem seus representantes nos postos principais do governo. A recessão prolongada, o desmonte do estado, as ondas de conservadorismo, o apelo autoritário, tudo junto e misturado é o caldo mágico da banca e das nossas elites para perpetuar desigualdades e manter o gado humano brasileiro.

Ano novo? Que ano novo senão a continuação da luta democrática e o acirramento das contradições que este modelo impõe ao povo? Que democracia é esta em que se descumpre decisão judicial, se defende a execução de adversários e se aplaude o renascimento da Ação Integralista e o nazismo?

É impressionante como tem gente dizendo que as instituições são fortes e garantem o estado democrático de direito, tendo ao mesmo tempo total consciência do desrespeito à Constituição, das perseguições políticas, religiosas, dos crimes de gênero e do genocídio da população negra.

2020 não passa de continuação de 2019 no sentido em que a luta contra o governo e seus desatinos, sua truculência e sua ignorância, terá de se aprofundar na sociedade sem arrogância e sobretudo sem preconceitos; apenas mostrando dados, comparando realidades, conversando e ouvindo tanto quanto falando. Um trabalho de formiga.