A história trágica que inicia esta reportagem aconteceu em 25 de julho de 2016. Ela é narrada pela mãe de Mário de Andrade, a recifense Joelma Andrade, 41 anos, conhecida na comunidade do Ibura, maior favela do Recife, como Jô.
“Marinho vinha de uma partida de futebol com um amigo. Eles seguiam em linha reta pela avenida Dom Hélder Câmara, quando o assassino vinha embriagado na moto em ziguezague e atingiu a bicicleta de Mário. Havia outro homem na garupa da moto, que até hoje ninguém sabe quem é, e deu três tiros no chão para os meninos pararem. Eles pararam, o cara revistou, fez sinal de legal e chamou o assassino do meu filho para ir embora, mas ele não quis ir. O assassino disse que ele mesmo iria resolver. Em seguida, deu duas coronhadas em Mário e o primeiro tiro. Foi quando o amigo dele saiu correndo para o outro lado da pista, o assassino correu atrás disparando a arma de fogo, acertando ainda três disparos na perna e nas nádegas”.
O criminoso voltou ao local do acidente e desferiu mais dois tiros no jovem Mário de Andrade, que estava baleado no chão, acertando peito e cabeça. Depois do assassinato, o criminoso ligou para o Centro Integrado de Operações de Defesa Social (CIODS) informando que havia matado dois “bandidos”.
Jô, a mãe do jovem assassinado, que não era bandido, continua narrando o crime:
“Uma vizinha me avisou do acidente, mas não disse o que tinha acontecido com meu filho. Quando cheguei no local, disseram que Mário tinha sido socorrido para a Policlínica do Ibura,. Então segui pra lá, mas ele não estava. Depois disseram que ele tinha sido socorrido para a Unidade de Pronto Atendimento da Imbiribeira. Quando cheguei, ele também não estava lá, e o desespero aumentava sem saber do meu filho. Fui na UPA da Lagoa Encantada, no Ibura, e lá a médica informou que ele havia dado entrada bem mal e sido transferido para o Hospital da Restauração”.
O atendente então liga para o Hospital da Restauração. “Só pelo olhar do recepcionista, eu sabia que não ia ver meu filho mais. Voltei pra casa buscar meu documento e, quando cheguei lá, não deixaram eu ver Mário. Só nessa hora descobri que meu filho tinha sido registrado como bandido, a polícia estava lá e não deixava eu vê-lo. Só consegui ver meu filho no dia seguinte dentro de um caixão, pois nem no IML me deixaram entrar.”
Saindo do cemitério, Joelma seguiu imediatamente para um protesto que liderou junto à organizações sociais, interditando a Avenida Recife, na entrada do bairro do Ibura, buscando honrar a memória de seu filho, pedindo por justiça e investigação do caso. “Quando eu cheguei, fui pra rua, eu não vim pra casa chorar o luto, não vim gritar a dor que eu tava sentindo, eu fui pra rua. Chegaram vários coletivos, muita gente pra me apoiar”, conta Joelma Andrade.
Mudança de casa por causa da intimidação policial
Jô conta que esse primeiro protesto e os diálogos construídos com outros coletivos na ocasião fizeram com que ela percebesse a existência do racismo estrutural. “Eu comecei a minha luta daí, né? Foi onde eu comecei a entender o que era o racismo, que eu era uma pessoa preta, que meu filho foi morto por ser uma pessoa preta moradora de favela. Depois do protesto, passei cinco dias sem dormir e vinte dias pra voltar a entrar na minha própria casa, porque eu não conseguia”.
No início de agosto do mesmo ano, 2016, o assassino se apresentou no fórum e foi detido no presídio militar. Então, Joelma iniciou uma batalha para que o policial assassino fosse exonerado da Polícia Militar de Pernambuco. Nesse período, ela precisou se mudar da residência, passou dez meses morando em outro município, em Paulista, no bairro do Janga.
A mudança aconteceu por motivo de segurança: policiais passavam em viaturas apontando para sua casa, como forma de intimidação, amedrontando toda a comunidade. “Eles passavam na minha porta, apontavam pra cá e diziam ‘ela mora aí olha, ela mora aí‘, e o pessoal ficou com muito medo. Então eu saí daqui”, conta Joelma.
Transformar o luto em luta
Depois de dez meses, Joelma Andrade voltou para casa. Então foi ao Palácio do Governo se reunir com o governador e o secretário de segurança. Tinha um documento com mais de 3.000 assinaturas comprovando que Mário Andrade morava na comunidade. Mas a resposta que recebeu do secretário na época, em forma de pergunta, foi absurda: “Imagina como ficaríamos se fôssemos consertar todos os canos estourados da rua?”.
O lema que Joelma Andrade carregou – “transformar o luto em luta” – gerou uma série de protestos em vários bairros do Recife, envolvendo coletivos como Gris Solidário, Neimfa e Caranguejo Tabaiares Resiste. Até que, em 2017, o assassino foi exonerado da Polícia Militar.
A luta de Joelma continuou, ela queria que acusado fosse a júri popular. O julgamento, adiado duas vezes, aconteceu após um ano e quatro meses de espera. Quando finalmente aconteceu, o réu foi condenado a 30 anos de prisão, em regime fechado, a ser cumprida na Penitenciária Barreto Campelo.
A criação de Centro Comunitário Mário Andrade
Logo após a condenação do assassino, nos últimos dias de novembro de 2018, Joelma Andrade decidiu transformar sua casa no Centro Comunitário Mário Andrade (CCMA). Foi morar de aluguel, com a despesa paga por apoiadores e simpatizantes.
Teve início a campanha para a reforma do espaço. As paredes da casa foram derrubadas para reformulação das novas necessidades, mas logo veio a pandemia e o foco de Joelma mudou. “A gente parou a reforma e começamos a campanha Quarentena Solidária, solicitando alimentos, material de higiene, álcool, tudo pra doar pra comunidade”.
Várias famílias ficaram em situação de vulnerabilidade social frente ao desemprego e necessidades impostas pelo isolamento. E o Centro Comunitário Mário Andrade se tornou um porto seguro para as famílias que buscavam auxílio.
O Centro passou a ser uma central de arrecadação de donativos no Ibura de Baixo, realizando inúmeras ações de doações e entregas de cestas básicas, kits de higiene, instalação de pias em espaços públicos para higienização das mãos. Também realizou atividades em parceria com a ONU Habitat, instalando caixas d’água em casas que não tinham reservatório.
Mesmo focados em ajudar na pandemia, o Centro Comunitário Mário Andrade recebeu uma doação da Benfeitoria, organização de financiamento coletivo, destinada à reforma, depois outra doação, da mesma instituição, para fortalecer o combate à pandemia. O cadastro inicial feito por Joelma em 2019 na comunidade contava com 106 famílias; hoje, chega a quase duzentas famílias assistidas pelas ações do CCMA.
O Centro Comunitário Mário de Andrade hoje
O Centro Comunitário Mário Andrade dialoga com diversas ONGs e coletivos da Região Metropolitana do Recife. Com alguns, têm articulações bem sólidas, como o Caranguejo Tabaiares Resiste e Gris Solidário – situadas nos bairros de Afogados e Várzea, respectivamente, estas organizações são fundamentais nos seus territórios.
O Centro Comunitário Mário Andrade atende as comunidades Terra Nostra, Jagatá, Paz e Amor, Terra Prometida, Comunidade da Linha, Manaíra, Michelon, Carrapateira, Comunidade do Melaço, Comunidade da Azeitona e Rio Una, todas localizadas no bairro do Ibura. Ações de saúde, como teste de filariose e aferição de pressão acontecem periodicamente nas dependências do centro comunitário.
Joelma conta que as pessoas se sentem acolhidas no Centro Comunitário Mário de Andrade. “Aqui é o coração de Mário. Cada ação que eu realizo aqui, eu sinto Mário falar pra mim que eu estou no caminho certo. Cada cesta básica entregue é ele dizendo pra eu não desistir. Muita gente dizia que o centro não ia dar em nada, e hoje somos uma referência“.
Atuando no combate aos estragos da chuva
Outro momento de total fragilidade da comunidade aconteceu nas fortes chuvas que caíram sobre a cidade do Recife em 2021. No Ibura, houve muitas enchentes e alagamentos, deixando famílias desabrigadas, gente perdendo todos os bens.
Nesta ocasião, medidas emergenciais foram tomadas no intuito de assegurar a vida das pessoas. As comunidades se uniram para uma corrente de solidariedade. Joelma Andrade enfatiza que esse momento foi crucial, arrumaram forças e puderam ver que a união é capaz de gerar transformação.
Rosineide Maria da Silva, 43 anos, moradora da Comunidade Paz e Amor há 10 anos, conta com alegria que o Centro Comunitário Mário Andrade trouxe muitas coisas boas e inéditas para o local.
“Muita gente passava necessidade, depois que o centro apareceu, a nossa vida mudou. Melhorou bastante, porque nem todo mundo quer fazer doação pra alguém ou ajudar, né? Aqui, eles foram os primeiros. Então, tem que agradecer, primeiramente a Deus, e depois a eles”, diz Rosineide.
Localizado especificamente na Rua Professor José Brasileiro Vila Nova 112, Comunidade Paz e Amor, Ibura de Baixo, em Recife, o Centro Comunitário Mário Andrade realiza oficinas para adolescentes e jovens da comunidade, além de aulas infantis de leitura e escrita. Ações como o Sopão acontecem periodicamente, e mutirões de grafite são realizados como forma de restaurar a autoestima e as identidades periféricas.
Lindas histórias contadas pelas voluntárias
Marinalva Miranda de Lima Silva, 54 anos, é moradora da comunidade Paz e Amor e educadora nas aulas de leitura, escrita e reforço para as crianças e adolescentes de 5 a 12 anos, que começaram ontem.
O que a faz querer ser voluntária é a sensação de acolhimento que sentiu no lugar. “Tava em casa sem fazer nada, vim pra cá fortalecer, ajudar quem precisa. Porque todos nós precisamos, mas temos gente que precisa mais ainda. Então, senti a vontade de participar, de acolher, de colaborar com o grupo de Joelma”, explica Marinalva.
“O que me chamou a atenção foi que ela não trabalha só com a cabeça, ela trabalha com o coração, ela tira dela para dar aos outros, eu já vi aqui. Então só com isso, meu filho, a gente já fica engrandecida! É um lugar que se precisar, ela vai debaixo de sol e chuva pra conseguir”, conta Marinalva.
Ela destaca a importância de atividades que tirem as crianças das ruas e caminhem junto à escola, proporcionando novos horizontes. “O que eu desejo é que o centro cresça mais e mais pra acolher ainda mais gente”.
Outra voluntária é Patrícia Nogueira, 45 anos, enfermeira de formação e aceleradora social, moradora da Comunidade da Linha. Ela se tornou voluntária do Centro Comunitário Mário Andrade em janeiro deste ano e conta que resolveu somar na luta porque se sente muito bem em ajudar o próximo.
“Eu acompanhei a história de Joelma depois de todos acontecimentos, fui na internet pesquisar a história de vida dela. Mesmo morando perto, eu não a conhecia pessoalmente. Desde o dia em que a conheci, que tive a oportunidade de entrar aqui, me engajei e estamos juntas. Ela é um exemplo de garra, de perseverança, de empatia e amor ao próximo”, descreve Patrícia.
Patrícia Nogueira atenta para o fato de que “o centro precisa muito do engajamento da população, de atividades acontecendo e de doações diversas. A gente está correndo atrás de parceiros de todas as esferas, sociais, políticas, educacionais, porque a comunidade é de fato muito carente”.
Agosto começa com gás total
As atividades no CCMA estão sendo construídas e o espaço está aberto às propostas de organizações e da sociedade civil para realizar oficinas, cursos, rodas de diálogo e demais atividades socioculturais.
No início deste mês, começa a Oficina de Fotografia para adolescentes e jovens. André Lira de Araújo, 42 anos, fotógrafo, mais conhecido como André Materazzi, é morador da Comunidade da Linha e também é voluntário do CCMA.
Ele se disponibilizou a ministrar a Oficina de Fotografia. Para André, as atividades realizadas no Centro Comunitário Mário Andrade transformam a vida de pessoas que já perderam a esperança.
“Se você prestar atenção, aqui na comunidade faltam várias coisas, além da desordem do esgoto e das enchentes. Ter um centro comunitário onde se entrega cestas básicas, têm cursos, oficinas, é pra trazer de volta a esperança da população da comunidade”, analisa André Materazzi.
Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.
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