Humberto estava indiferente aos risos das pessoas que o viam pensando alto, por dois motivos: o primeiro era pelo fato de ser surdo, não podendo ouvir as piadas jocosas e ingratas, que os “normais entre aspas” dirigiam a ele; o segundo, como consequência do primeiro, era proveniente dos mecanismos que havia desenvolvido ao longo de sua trajetória de vida, a opção por ignorar os olhares preconceituosos e cheios de expressões estigmatizantes que o cercaram desde sempre, e que funcionava como uma espécie de blindagem contra o bullying vindo do mundo ouvinte.
O preconceito sempre é uma coisa ruim. Basta um pouco de empatia, ou seja: a habilidade de se colocar no lugar do outro, para perceber o quanto o preconceito, seja como hábito ou sentimento, é algo cruel e nocivo; – há os que conseguem desenvolver um tipo de carapaça para suportar as opressões por meio de palavras, olhares ou comportamentos. Infelizmente, nem todos são capazes disso. Humberto, o surdo ( não pense você que é ofensivo chama-lo assim e já vou explicar o porquê ), é um desses resistentes, um verdadeiro “casca-grossa” nesse sistema perverso e segregado.
Quando disse que não é errado referir-se a ele como ‘o surdo’, vou explicar a razão: existem tipos diferentes de surdos, cada um deles com sua particular identidade; Humberto é um surdo de identidade surda completa, isto é, aquele sujeito que não se envergonha de sua surdez, faz uso da língua brasileira de sinais como sua primeira língua e o português como segunda língua na modalidade escrita , além de participar de uma comunidade de surdos com outros iguais a ele, que constituem assim um grupo social.
Porém, ser minoria como sujeito social e linguístico no Brasil, não é uma situação nada confortável, Acrescente a isto, o fato de Humberto ter os cabelos crespos e a cor “parda” no registro de nascimento, com o agravante de estar desempregado junto com outros quase vinte milhões de brasileiros, só porque um grupo político movido inicialmente por revanchismo resolvera dar um golpe e destituir do governo uma presidenta democraticamente eleita; – como impor a ele o jugo pesado da meritocracia? Como insinuar a respeito dele que ele não tenha se esforçado o suficiente? Muito mais agora que leis desumanas e decretos presidenciais são forjados contra pessoas com deficiências, impedindo-as de prestarem concursos públicos com material adaptado para suas limitações e dificuldades. Há mérito nisso, em dificultar o acesso a quem sempre teve que lutar contra as deficiências impostas pela maioria que se julga ”normal”? – Pensemos aqui, juntos, com nossos botões. A ideia de meritocracia é uma perigosa armadilha, há de concluirmos, se não formos desonestos intelectuais.
De volta ao Humberto, o fato é que ele está desempregado, e sua esposa, igualmente surda, está no quinto mês de gestação. As coisas começam a faltar e ele não pode mais esperar. Tem que fazer algo. Tem que agir. Já que o mercado não o quer absorver, impondo-lhe barreiras impossíveis de transpor, nada como inventar seu próprio mercado e seu particular trabalho. O bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, pela sua diversidade e fluxo de gentes, será o lugar de sua atuação. A noite lhe será uma criança.
Chegou no local proposto às sete da noite, e o bairro da Lapa ainda estava vazio. As pessoas costumam chegar em peso por volta das onze. Quis estar mais cedo para já ir se ambientando a rotina e, ao mesmo tempo, demarcando seu espaço territorial. Ele precisava disso; precisava fazer seu rosto conhecido pelos frequentadores do bairro carioca mais malandro . Nas costas, uma mochila cheia de “bagulho”; pela frente, a possibilidade de exercer toda sua criatividade naquilo que idealizava. Posicionou-se a princípio na rua do Lavradio, em frente ao “brizolão”, onde começou a equipar-se, esvaziando da mochila toda aquela “bagulhada”. Um a um, as mercadorias eram armadas em um tabuleiro pequeno, que ele pendurava por uma alça no pescoço. Tinha visto outros camelôs fazendo isso quando saía com amigos para beber; só precisaria compensar a incapacidade dos ouvintes de compreenderem a LIBRAS (língua brasileira de sinais) utilizando um recurso adicional: a plaquinha, escrita em português com a seguinte frase: ”UM MINUTO; SOU SURDO”.
Tinha visto tanto estrangeiro se dando bem no Rio de Janeiro, porque não – sendo ele também um estrangeiro dentro de seu próprio país – se dar bem na cidade onde nasceu e sempre viveu?
Cheio de esperanças saiu para a luta, ou seja, a abordagem de pessoas para tentar vender a elas trident, balas halls, menthos e cigarros a varejo de todos os tipos, sendo cuidadoso em etiquetar de maneira bem visível cada item. A metodologia que desenvolveu era bem simples: chegar em um grupo de pessoas que estaria bebendo ou conversando animadamente, escancarar um belo sorriso e em seguida levantar a placa tão bonitinha escrita ”UM MINUTO; SOU SURDO”, depois era só apontar para cada mercadoria e fazer aquela expressão de ”por favor, me ajude. Conto com você”, que quase sempre funciona. Foi pegando a manha em cada abordagem, se empolgando sempre mais com o sucesso alcançado. Não parava de pensar o quanto sua esposa ficaria feliz ao saber que o dinheiro do aluguel seria pago, que não precisariam mais cozinhar na lata de sardinha, porque poderia enfim comprar o gás. “As pessoas são legais” – pensava em sua inocência.
Eu não sei como pode existir gente TÃO maligna e a serviço do mal, transitando entre pessoas TÃO bacanas nas ruas próximas da Lapa. Por volta de uma da manhã, quando o caldeirão fervia de tanta gente, Humberto havia se posicionado junto a uma imensa fila que se formara na entrada do Teatro Odisseia, na Mem de Sá, fazendo seu trabalho de formiguinha. Alguma criatura sem coração, desprovida de humanidade, ligou para o SEOP (secretaria de ordem pública) para denunciar de prática de poluição visual os camelôs que tentavam sobreviver entre tantos possíveis compradores. Alguém gritou: ”OLHA O RAPA!”, e os ambulantes ”se diluíram no ar como mágica”; – menos Humberto, que por ser surdo não ouviu o alarido, e também não havia entendido o porquê de toda aquela correria. Quando os guardas chegaram, cheios de truculência, tratando oprimido feito bicho, cercaram o surdo, que em sua defesa levantou a plaquinha onde estava escrito ”UM MINUTO; SOU SURDO”. De nada adiantou, ele levou uma bofetada no rosto que chegou a estalar, enquanto outros lhe arrancavam com força as mercadorias que ele comprara com tanto sacrifício. Mas quando meteram a mão em seu bolso e tomaram seu suado dinheirinho, produto de seu trabalho, Humberto se transformou; ”- aí, já era sacanagem demais”, ele acertou um soco no queixo daquele que lhe dera uma bofetada, nocauteando-o. Depois uma pernada em um segundo, soltando o grito estridente que só os surdos muito putos da vida sabem dar; é mais ou menos assim: ”RUOOOOOOOOOOOOOOOÓ”; e mais pernadas, socos e pontapés. Eu já tinha dito que o surdo era ”casca grossa”, na mão era ruim de moê-lo. Mas diante dos cassetetes e das armas de choque não havia muito o que se fazer, até que o surdo finalmente fora dobrado, jogado no chão, mijado e quase desmaiado. Foram preciso seis guardas e dois PMs para contê-lo. Nessa altura, a multidão na Mem de Sá, rompeu-se em uníssono diante de tanta covardia.”- COVARDES! COVARDES! SOLTEM O ”MUDO”! SOLTEM O ”MUDO”!”; – nem adiantaria tentar explicar, naquele momento, que é errado chamar o surdo de ”MUDO”; – o conforto linguístico estava valendo, pois a multidão apertava cada vez mais os brutamontes fardados.
” – Devolve as coisas dele!” – disse um
” – E o dinheiro também!” – lembrou outro
” – SOLTA O ”MUDO!; – SOLTA O ”MUDO!” – o coro da multidão aumentava cada vez mais, de uma forma que nunca haviam imaginado.
Os PMS, por sua vez, ao ouvir da multidão que um dos guardas havia tomado o dinheiro do surdo, ordenou que ele devolvesse o dinheiro a ele, uns setecentos reais, e quando chegou o reforço policial, imediatamente deu voz de prisão aos GMs. A multidão aplaudiu em frenesi. Um desconhecido se apresentou como advogado, se oferecendo para ir acompanhando Humberto, que a essa altura já recobrava as forças. Outros dois, munidos de câmeras que registraram tudo, inclusive a apropriação indevida do dinheiro, se ofereceram como testemunhas; – ainda há gente muito boa e humana na Lapa. Todos foram conduzidos então à delegacia mais próxima. Cinco minutos depois do ocorrido, a Mem de Sá já estava tomada de ponta a ponta, como se nada tivesse acontecido. Na calçada, sendo pisado por tantos pés diferentes, só restou a plaquinha escrita com tanto carinho pelo surdo criativo: ”UM MINUTO; SOU SURDO”.
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Naquela mesma madrugada, o telefone tocou na casa de uma amiga:
– Boa noite. É a dona Karine?
– Sim, quem é?
– Desculpa o horário, estou aqui na 5° delegacia, me ofereci para advogar o Humberto, um ”mudinho”. Ele me deu seu nome, escreveu que você é intérprete de LIBRAS. Você o conhece?
– Sim, claro! Estou indo pra aí agora. Só que não é mudinho; – é SURDO! SUR-DO!
– Ok.
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Bom, a história termina com os guardas municipais demitidos e processados, devido a repercussão das imagens filmadas pelos celulares, Humberto, que foi pai de uma menina, ganhou uma indenização do município, graças aos esforços do eficiente advogado que se voluntariou para ajudá-lo, além de ser contratado para trabalhar na cozinha de um restaurante próximo aos arcos, onde em pouco tempo tornou-se chefe.
E o mais legal de tudo, é que Karine, a intérprete, e o advogado se conheceram melhor, iniciaram um romance e hoje estão casados. – Humberto foi padrinho do casamento.
Dizem que por causa dele, outros surdos passaram a trabalhar na cozinha dos restaurantes locais; – espero que seja verdade.