Caro Rodrigo Constantino. Li sobre o seu Joaquim. Gostaria de lhe apresentar a história de Maria.
Maria era uma menina muito pobre, que estudava em uma escola pública e morava numa favela. Cansada, após apoiar a greve dos professores, resolveu dar um rolezinho em uma biblioteca. Ela sabia que aquilo mudaria sua vida, pois seus professores sempre indicavam isso, e ela fazia constantemente. Diferente de muitas pessoas da classe média. Que tem livros em suas casas, mas não leem.

Lá, ela descobriu os clássicos e muitos contemporâneos. Sófocles, Shakespeare, Kafka, Dostoiévski, Camus, Mas ela se cansara de tantos brancos europeus mortos. Com Elisa Lucinda, navegou pelas entranhas da natureza de ser mulher negra imperfeita. Com MV Bill, chegou ainda mais fundo no “horror”, entendendo o que acontece quando a polícia entra na favela sem respeitar morador.

A fome lhe ensinou sobre a propriedade privada, e a PM lhe explicou o poder da “mão visível”, segurando uma arma, que acaba levando a um resultado terrível, com  cada um seguindo os próprios interesses.

Lima Barreto foi fundamental para sua compreensão das vantagens comparativas e do privilégio branco. Ela soube que mesmo em trocas voluntárias em que tivesse menos habilidade em tudo, ainda assim elas poderiam ser mutuamente benéficas. Só que na sociedade brasileira não acontece isso

Com Milton Santos, soube entender o relativismo cultural, e que é necessário ter conhecimento sobre a história e cultura afro-brasileira e africana. Compreendeu, ainda, que o conceito da Grande Sociedade Aberta, é uma falácia à brasileira, que o Estado brasileiro mantém segredos para si mesmo; é uma sociedade autoritária, uma sociedade em que nem  todos são respeitados, com o conhecimento de todos.  Assim como os curtos limites da tolerância desta.

Abdias do Nascimento foi crucial para que ficasse mais atenta àquilo que não se vê de imediato, ou seja, o Racismo das oportunidades das escolhas ou políticas públicas. Isso a ajudou a criticar a visão míope de muito governante em busca de votos, com suas medidas populistas e assistencialistas de cunho racistas.

De Malcom X ela absorveu as verdadeiras características das mentiras da democracia americana, da escravidão nada voluntária que esse país impôs aos negros,o que ajudou a construir uma nação próspera, porém injusta. A morte do reverendo Martin Luther King  sepultou de vez qualquer confiança na política americana, que tivesse sobrevivido após a lavagem cerebral dos programas na televisão.

Mano Brown, intelectual brasileiro, deixou bem claro com suas letras que os poderes executivos, judiciário e legislativo são corrompidos e o poder absoluto corrompe absolutamente. Que  o ser humano é descartável no Brasil..

Ela mergulhou na Escola Pública. Descobriu com seus professores de História, Filosofia e Sociologia, e nunca mais levou a sério o Globo ou a Veja. Já tinha noção clara de que, mesmo sob tanta propaganda, o sistema capitalista não poderia funcionar, pela impossibilidade das crises cíclicas do capitalismo.

Dos pensadores conservadores, como Burke, John Adams, Russell Kirk, Oakeshott, Isaiah Berlin, Irving Babbitt e Theodore Dalrymple, capturou a importância do que falava Kabengele Munanga: que esses eram brancos europeus mortos, que pouco acrescentavam às tradições e cultura afro-brasileira, que  os limites da razão, os riscos das ideologias e utopias, o enorme perigo das revoluções são sementes a serem cultivadas.

Passou também a desconfiar da democracia burguesa, entendendo que esta é a simples tirania da minoria sobre a maioria.  As bem constantes incurssões do BOPE lhe ensinaram sobre os necessários limites constitucionais do poder estatal. Montesquieu, coitado, reescreveria sobre a divisão dos poderes, ao se ver numa favela.

Cabral, o governador, foi como uma luz ao lhe mostrar a “destruição destruidora”.Da Educação, da Saúde, da Segurança Pública. Agora temia mais o avanço tecnológico, as inovações capitalistas,  pois sabia que estas  geravam mais riqueza( para quem tinha já muito dinheiro) e eliminava novos empregos.
Muniz Sodré  lhe mostrou a falácia da meritocracia na Educação, e Renato Emerson, a eficácia das cotas raciais.

Lendo – e  entendendo – as critícas ao mundo capitalista de seus tempos, de Orwell, Huxley, Ayn Rand e Koestler, ficou apaixonada por todo tipo de tentação,pelas “soluções mágicas” que criariam um “mundo melhor” ou uma nova humanidade.  Sabia que o coletivismo era o caminho para a destruição do individualismo egocêntrico.
Estudou Economia, com Marcelo Paixão, e ficou sabendo que “vários “intelectuais” colocavam as “ideias abstratas acima dos seres de carne e osso, louvando a Humanidade, mas agindo com profundo desdém em relação aos próximos”. E aprendeu que a isso dá-se o nome de “Editorial de O Globo”.

Descobriu também que possuia a música em si. Funk, clássica. Pagode. De tudo escutou, pois tudo lhe era humano e belo:  Mozart, Kiss, Beethoven, Paralamas, Brahms, Titãs, Bach, ABBA, Chopin, Rachmaninoff, Florence, Tchaikovsky, e ficou encantada.  Aquilo tudo esteve e está em sua alma! Foi Joãozinho 30, e sua estética do Luxo e do Lixo, quem lhe demonstrou a importância da beleza em nossas vidas. Fazia agora tudo: filmava, compunha, dançava, pintava; posto que tudo é arte, nada é arte.
Leu muito os poetas negros Arnaldo Xavier (1948-2004) e Ricardo Aleixo, e ficou interessada na experimentação e na intersecção entre as linguagens.
Com Cidinha da Silva, prosadora refinada, aprendeu a situar seu texto na nervura do presente, atenta aos ardis das representações e das afecções a que são submetidos os negros contra um pano de fundo multimídia.
Maria tinha um espírito lutador, e desejava muito melhorar de vida. Foi com sua bagagem cultural com os amigos no shoping, tentar a sorte, dar um rolé.  Era verão, tava calor,  anos 2014, com mais oportunidades de se divertir. Sempre olhara para os playboys com ódio, nunca inveja. Eram uma afronta para ela, um exemplo a ser combatido. Hoje ela é um militante de sucesso e vive em paz.
Em sua velha comunidade, é chamada  de “irmã”. Por ser negra acusam-na de se comportar como um “negra feminista” e defender sua raça. E ela sempre entendeu dessa forma. Para ela, o normal é desejar mudar a vida, dela e dos seus. Combater  a discriminação dessa “missão civilizadora” racista, machista e exploradora e não desfrutar dela. Até hoje ela é muito grata pelo rolezinho que decidiu dar no shoping, e perceber o quando sempre fora discriminada pela hipócrita “alta cultura” quando jovem.

 

 

Maximiano Laureano