A sociedade brasileira sofre as consequências de uma grave ruptura institucional. O impeachment – golpe parlamentar, promovido por uma espúria coalizão político-jurídico-midiática, revelou-se uma aventura inconsequente que gerou traumas profundos na recente experiência democrática brasileira. O Brasil está diante de um cenário de profundas incertezas quanto ao futuro. A garantia de direitos sociais e o exercício da política e da cidadania de forma plena estão em xeque e seriamente ameaçadas.
Partindo desse pressuposto, é preciso criar as condições para uma saída deste impasse pela via democrática, recompondo um ambiente de confiança da sociedade na política e em suas instituições. É preciso também reconstituir e garantir minimamente as conquistas sociais obtidas na última década e meia, que modificaram o tecido social brasileiro, configurando um estado de bem-estar social, hoje ameaçado por uma agenda regressiva e rejeitada pela população. Um pacto dessa natureza só terá sentido se consagrado pelo povo, nas urnas. O governo de Michel Temer carece de estabilidade e legitimidade necessárias para uma concertação deste tipo. Temer é parte do problema, não da solução. Setores da elite política e econômica já sabem disso e abandonam o barco progressivamente. O último a sair que apague a luz.
No entanto, quais estratégias devem ser adotadas para a continuidade das políticas públicas que obtiveram êxito e alcançaram o patamar de políticas de Estado no Brasil? Creio que esta questão deve estar colocada para quem atua e milita nas áreas de saúde, educação, comunicação, agricultura familiar etc. Mas dirijo esta reflexão aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura, especialmente abatidos e traumatizados pelo episódio recente da extinção provisória do Ministério da Cultura. O setor cultural tem sido abatido há décadas por sucessivas interrupções e descontinuidades das políticas públicas para a área nos diversos níveis. Na cultura, a instabilidade não começou em 2016, e, infelizmente, faz parte de uma “triste tradição” da cultura política brasileira.
É neste contexto de crise, instabilidade e desconfiança que o jornalista Sérgio Sá Leitão assume o Ministério da Cultura do Brasil. Não se pode ignorar a oposição política que amplos setores da cultura fazem ao governo de Michel Temer, nem tampouco as posições políticas assumidas pelo atual ministro no último período, que certamente contribuíram para conduzi-lo ao cargo. No entanto, é necessário reconhecer que Sérgio Sá Leitão é um gestor cultural de trajetória conhecida, que ocupou diversos cargos em nível local e nacional nos últimos 12 anos, e que certamente não ignora os temas, desafios e complexidades do setor. Faz diferença que o novo ministro seja Sá Leitão, e não a filha de Roberto Jefferson, Cristiane Brasil, ou um obscuro deputado peemedebista defensor de vaquejadas.
Mesmo reconhecendo as profundas diferenças de posicionamento político e ideológico em jogo, é preciso considerar a necessidade urgente de se reconstituir na esfera pública o debate e a implementação das políticas de Estado para o setor cultural no Brasil. Neste sentido, sugiro abaixo alguns tópicos que poderiam constituir, neste momento de crise, uma agenda mínima para as políticas culturais no Brasil.
1) Conferência Nacional de Cultura. A convocação da IV Conferência Nacional de Cultura, de caráter ordinário, está atrasada em pelo menos um ano, e a sua realização é condição básica para o funcionamento do Sistema Nacional de Cultura. A etapa nacional deverá ser precedida pelas Conferências municipais e estaduais, e a sua realização deve ser convocada pelo Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC), que também deve retomar o seu funcionamento regular, bem como os Fóruns, Colegiados Setoriais, Comitês Técnicos, Comissão Nacional de Pontos de Cultura e demais instâncias de participação social legalmente instituídas.
2) Plano Nacional de Cultura. O PNC estabelece metas quantitativas e qualitativas para as políticas culturais no Brasil até 2020, frutos de intensos debates que contaram com ampla participação de gestores culturais dos três níveis da federação e dos mais diversos segmentos da sociedade civil. A plena observância às metas do PNC deve ser a bússola orientadora para qualquer ação de governos relacionada ao setor cultural.
3) Cultura Viva. A Política Nacional de Cultura Viva, consolidada através da Lei 13.018/2014 e regulamentada entre 2015 e 2016, conta hoje com Pontos de Cultura nos 27 estados e em mais de 1.000 municípios brasileiros. Existem hoje recursos da ordem de R$ 50 milhões já disponíveis em convênios, que sofrem com a interrupção dos fluxos de suas ações. É necessário parar a suspensão dos convênios com estados e municípios, garantir a utilização dos recursos disponíveis nos convênios vigentes, garantir o pagamento dos editais já realizados e a publicação de novos editais, com a plena aplicação do Termo de Compromisso Cultural e do reconhecimento dos Pontos de Cultura autodeclarados, instrumentos previstos e regulamentados na Lei Cultura Viva.
4) Recomposição orçamentária. A situação do MinC hoje é de quase falência, e o orçamento atualmente disponível não garante sequer a manutenção física da estrutura e das ações do ministério e suas entidades vinculadas. É urgente a recomposição do orçamento da pasta ao patamar mínimo de 1% do orçamento geral da União, em valores que permitam dar as condições básicas para a continuidade dos programas, projetos e ações do Ministério da Cultura.
Evidentemente, esta é uma relação incompleta de temas prioritários para uma agenda mínima. As políticas para o audiovisual e para as artes são essenciais, e os segmentos relacionados a estes setores contam com uma sólida trajetória na construção e formulação de planos e diretrizes para suas respectivas áreas.
Construir e defender uma agenda mínima para a cultura não se traduz em apoio, adesão ou mesmo reconhecimento de legitimidade ao governo ou aos gestores de turno, ainda mais em um contexto de profunda instabilidade política. Mas é necessário que o setor cultural retome imediatamente o debate sobre as políticas públicas para o setor em nível nacional, e que, para além da conjuntura, sejamos capazes de olhar para o horizonte, garantindo a manutenção das políticas de Estado, apropriando-se de décadas de construção coletiva e dando efetividade aos mecanismos existentes de controle e participação social.