“Todos os anos, recebo, aqui em minha casa, um grupo de italianos, que passa as festas de final de ano na cidade. São pessoas simples, comem comida simples, igual a que nós comemos. Na hora de partir, voltar para a Itália, eles sempre choram e dizem que não há lugar melhor no Rio que o Borel”, afirma Detinha, moradora do morro do Borel, comunidade localizada no bairro da Tijuca, Zona Norte do Rio. O depoimento acima, faz parte do documentário “Borel Tour: tradição e vivências no morro carioca”, e exemplifica bem o que é o Turismo Solidário: uma nova forma de ver, pensar e se fazer turismo que vem conquistando cada vez mais adeptos. Nele, os visitantes não apenas têm a chance de conhecer uma nova cultura e seus costumes, como vivenciam o cotidiano local em uma experiência de imersão. Uma prática que acaba sendo uma via de mão dupla, na qual Detinha também tem a oportunidade de aprender com a convivência com os estrangeiros. O documentário sobre a favela carioca é parte da série Retrato Brasil, que reúne até o momento onze filmes sobre o assunto, todos disponíveis no canal de mesmo nome do YouTube – todos dirigidos pelos professores e pesquisadores Rafael Ângelo Fortunato e Fernando Fernandes, do curso de Turismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Borel Tour ainda destaca outras peculiaridades culturais da favela carioca como a escola de samba Unidos da Tijuca. Com 80 anos de existência, a escola foi tetracampeã do carnaval deste ano pelo Grupo Especial da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). “Ela é a terceira escola mais antiga do Brasil. Seus fundadores tinham o objetivo de defender as raízes tradicionais do folclore brasileiro e também lutar pelas causas populares”, explica Fortunato. “Queremos mostrar que a favela tem uma história bonita, feita de desafios e conquistas. Para mudarmos o presente e construirmos um futuro melhor, precisamos conhecer nosso passado”, complementa a assistente social Ruth de Barros, uma das idealizadoras do projeto “Condutores de Memória”, que busca resgatar a memória dos morros cariocas da Grande Tijuca.
Também merece atenção o trabalho do artista plástico Jessé e dos jovens idealizadores da galeria de arte a céu aberto BoreArte. “As pessoas me chamam de maluco porque cato lixo. Mas como nada se perde e tudo se transforma, eu aviso que se me virem com duas pernas dentro da lixeira que não se assustem: sou eu catando sucatas para minhas criações”, declara o artista. Entre as suas criações estão um aquário feito a partir de um forno de micro-ondas, relógio ornamental com colheres descartáveis, entre outros. Já a BoreArte reúne um grupo de jovens que vem pintando áreas e redecorando casas em áreas que, antes da implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na comunidade eram mais conhecidas como localidades de confrontos armados da comunidade. “Estamos em campanha para transformar uma escadaria que servia como ponto de conflitos num ponto turístico. A ideia é tornar o lugar atraente à visitação e esquecer as ‘guerras’ do passado. Hoje, os locais que pintamos, principalmente com grafite, passaram a ser conhecidos como área de cultura e não mais de confronto”, afirma, entusiasmado, Fred, um dos idealizadores da galeria.
Uma tendência ainda pouco difundida no País, o “turismo solidário”, como vem sendo chamado, avança com a adesão de comunidades e de associações diversas, e não apenas nos morros, mas também em regiões de praia e serra do estado. “Ele se caracteriza, principalmente, pelas iniciativas de associações de moradores que criam redes de solidariedade entre os habitantes e assim têm a oportunidade de mostrar seus valores e sua cultura aos visitantes. Um processo marcado pela geração de renda complementar, resgate de autoestima e troca de experiências com os turistas”, explica Rafael Ângelo Fortunato.
No caso das comunidades, chama a atenção o fato de que, além de ajudar no resgate da autoestima dos seus moradores e na preservação e no aprendizado da memória do local, muitas favelas têm uma vista deslumbrante da cidade, que a imensa maioria dos moradores do asfalto desconhecem. Prova disso são os altos preços pagos por turistas estrangeiros para assistir aos fogos de Ano Novo, em festas realizadas em lajes de casas de favelas cariocas.
Fortunato coordena igualmente, sempre na Uerj, a “Rede Brasilidade Solidária”, projeto de extensão da universidade que tem como objetivo formar redes, disseminar, promover e divulgar o turismo solidário. Entre as diversas iniciativas ligadas ao projeto, ele destaca a criação de uma série de curta-documentários sobre o tema, intitulada Retrato Brasil, que recolheu depoimentos e registrou iniciativas nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Amazonas, Ceará e Santa Catarina. Os vídeos estão disponíveis no canal do YouTube. “Aqui no estado, fizemos um documentário sobre essa forma de turismo no Complexo do Alemão, comunidade da Zona Norte do Rio que corta vários bairros. Em seguida, realizamos um outro no Parque Estadual de Três Picos, outro no Borel e um terceiro em Barra de Guaratiba, Zona Oeste do Rio”, lista o turismólogo.
Paralelamente à produção de vídeos, a Rede oferece o curso gratuito “Comercialização e Gestão do Turismo Solidário” em diversas localidades do estado. Em turmas com um mínimo de 20 pessoas, o curso visa promover o turismo solidário e a formar redes para disseminação e divulgação da proposta. O curso, explica Fortunato, está ancorado na abordagem teórica e metodológica dos “6 Vs” do turismo solidário, a saber, visitação, vivências, vendas, vínculos, veiculação e validação. “Em aulas teóricas e práticas, discutimos com os moradores a viabilidade e as formas de construir parcerias”, acrescenta.
Vídeos mostram turismo solidário em diferentes locais
Depois de registrar aspectos do turismo solidário em cinco estados brasileiros e no Complexo do Alemão, a série de curta-documentários Retrato Brasil foi ao Parque Estadual dos Três Picos visitar iniciativas voltadas para o chamado “agroturismo”. Criado em 2002 e pouco conhecido dos fluminenses, o parque é o maior do estado e se estende por aproximadamente 46 mil hectares em cinco municípios – Cachoeiras de Macacu, Nova Friburgo, Teresópolis, Silva Jardim e Guapimirim. O nome é uma referência às três montanhas que se fundem e alcançam uma altura de mais de dois mil metros, no chamado Pico Maior de Friburgo, ponto culminante da Serra do Mar. O local é repleto de trilhas para caminhadas e pontos de escaladas, e os moradores do entorno vivem basicamente do agroturismo e da agricultura”, explica Fortunato.
Dona do restaurante João e Maria, em Salinas, na divisa das cidades de Nova Friburgo e Teresópolis, na Região Serrana fluminense, Maria é um dos personagens do documentário Circuito Três Picos, sobre o turismo solidário no parque homônimo. Acostumada com a vida rural, ela lembra os ensinamentos de sua mãe, que preparava batata-doce caramelizada no vapor, quando criança. Hoje, o doce com “sabor de infância” é oferecido em seu restaurante aos clientes. “Aprendi os valores da zona rural e que chique é ser roceiro”, diz. Outro local apresentado pelo documentário foi o Pouso dos Paula. À frente do negócio, Pedro atrai o interesse dos visitantes pela região com a exposição de artesanato, doces e produtos agrícolas típicos dos arredores, oferecendo aos turistas a possibilidade de conhecer mais detalhes no próprio local onde vive o morador-produtor. “Também apoiamos o projeto Vivências Rurais, em que o produtor vende o produto direto ao turista, sem atravessadores”, destaca Pedro.
O documentário seguinte, sobre Barra de Guaratiba, explora, além do resgate da história dos pescadores, o potencial do artesanato local, as praias protegidas da região e as belezas naturais do maciço da Pedra Branca, que abriga a Pedra do Telégrafo, de onde se tem uma linda e pouco conhecida vista do Rio. “Também gravamos cenas da prática de esportes na região, caminhadas por trilhas e stand-up paddle – uma espécie de remo, praticado de pé sobre uma prancha semelhante à usada no surf, geralmente nas águas calmas de rios e lagoas”, relata.
Até o momento a Rede Brasilidade Solidária já formou mais de 50 estudantes nos Três Picos, Morro do Borel, Barra de Guaratiba e num curso dado na Ilha Primeira – a maior ilha da Lagoa da Tijuca, depois da Gigóia, próxima ao bairro do Itanhangá, Zona Oeste do Rio –, fruto de uma parceria com a Biblioteca Comunitária Semear, projeto de extensão da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). “desde o começo deste ano, eles vem divulgando propostas de roteiros relacionados com o turismo solidário em albergues, hotéis, agências de turismo e universidades. “Vale lembrar que estamos disponíveis para ministrar cursos em outras localidades e municípios do estado”, destaca Fortunato. Ele frisa que a Rede trabalha em parceria com o Programa de Extensão da Uerj intitulado “Turismo Solidário, Cultura e Vida”, que conta com a participação de professores e estudantes dos cursos de Turismo, Nutrição, Enfermagem e Educação Física. “Queremos, no futuro, envolver outros cursos. Acreditamos que os roteiros que oferecemos podem inspirar pessoas a ter uma visão mais crítica da realidade. Nossa meta é pensar o turismo como instrumento de formação pessoal e transformação social”, conclui.