Entrevista: Nilo Batista, ex-governador do Rio e jurista
Prestes a completar 73 anos no mês de abril, a trajetória de Nilo Batista é marcada pelas suas cinco décadas de atuação no direito. Advogado, professor e fundador do Instituto Carioca de Criminologia, possui uma série de livros publicados na área, mas sua atuação se dá principalmente de maneira prática, defendendo os direitos daqueles que mais necessitam. Foi vice-governador no segundo mandato de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, assumindo o cargo durante seis meses com o compromisso de manter o projeto do companheiro. Enquanto secretário de Justiça e da Polícia Civil nos anos 1990, comandou as investigações que resultaram nas prisões de policiais envolvidos na Chacina de Vigário Geral.
Nilo Batista também sempre esteve próximo de movimentos sociais e da defesa dos direitos humanos – foi um dos grandes apoiadores na fundação da Agência de Notícias das Favelas e no período em que o diretor e fundador, André Fernandes, sofreu ameaças de morte. Crítico ferrenho do projeto dos governos Cabral-Pezão e das Unidades de Polícia Pacificadoras, ele defende uma política de segurança não excludente e integrada com a vida das comunidades pobres, como mostra a entrevista a seguir.
A Voz da Favela: O senhor governou o estado num período bastante crítico para a segurança pública…
Nilo Batista: Sem comparação com o que está aí agora. Mas eu não governei, o Brizola governou o estado (de 1991 a 1994, durante seu segundo mandato). Peço o favor de me diferenciar de vices desleais, traidores (risos). Quando eu estava sentado lá, eu era um cara eleito pela votação dele, então, tinha a obrigação moral e política de ser fiel. Quem descrevia uma hecatombe era O Globo, pelos seus interesses políticos. Conduzimos a coisa como podíamos. Hoje, temos essa situação calamitosa e O Globo não fala nada. Todo o noticiário desse setor é de legenda.
AVF: O senhor consegue ver alguma semelhança entre aquele período e hoje?
NB: Eu vejo a diferença. O projeto para as favelas naquela ocasião eram os centros comunitários da defesa da cidadania. Implantamos um no Pavão-Pavãozinho, um na Vila Aliança e outro na Mineira. Havia ali diversos serviços para a população. A polícia civil ali não trabalhava a questão de drogas, mas trabalhava os conflitos com participação da comunidade. Isto é uma coisa. A UPP é radicalmente contra essa ideia. Não se pode misturar a política criminal de Brizola com a política criminal de Sérgio Cabral. Vamos ser julgados com muita diferença também, mas pela história, que é o julgamento que interessa.
“O sistema penal é seletivo”
AVF: No direito, existe a questão do etiquetamento social, uma teoria que é aplicada no mundo todo, mas que, aqui no Rio, uma cidade desigual e excludente, atinge homens negros, pobres, favelados. Que peso isso tem na população carcerária?
NB: O etiquetamento orienta a atuação do sistema penal. Todo idiota que nunca estudou direito penal nem criminologia e que opina publicamente, como tantos por aí, opera pelo estereótipo criminal. Portanto, vem daí a seletividade do sistema e que questiona a legitimidade. O desenho do infrator é o exibido em programas de TV que também violam direitos – parece que ninguém do Ministério Público nunca ligou a televisão à tarde pra ver aquelas barbaridades. Está ali sempre o sujeito pobre, frequentemente negro, porque o racismo lateja no sistema penal todo, e este é o estereótipo que orienta a seleção que é feita. O sistema penal é seletivo.
AVF: O senhor acredita que isso influencia também no caos urbano atual, com os problemas relacionados à violência?
NB: Claro. Isso é uma nota determinante e que, ao mesmo tempo, questiona a legitimidade do sistema penal. Se ele é seletivo – e a gente sabe que é –, quando mandam para o patíbulo brancos e ricos, como agora, transmite-se a ideia muito falsa de que o sistema penal é igualitário e não seletivo. Esse é o maior dividendo político de agora, além de um outro mais dissimulado, que fornece uma falsa ideia de mobilidade social pelo avesso, como se os mais pobres pudessem ser os grandes milionários. Isso é falso.
AVF: Nas últimas semanas, temos acompanhado uma rotina de conflitos com mortes em diversas favelas. Como o senhor avalia essa crise generalizada de segurança pública hoje?
NB: A política criminal era puro espetáculo. Eu e Verinha (a socióloga Vera Malaguti, sua esposa) denunciamos isso lá no início. Era um absurdo por motivos óbvios. Mas alguém já conheceu algum estudo sobre enquistar um monte de polícia na favela? Nenhum estudo foi feito sobre UPP. O problema que existe é o seguinte: existe uma economia informal. Não só na favela. Uma parte importante dela é, por exemplo, a economia do comércio de drogas ilícitas. Além disso, existe um problema público em todas as favelas: transporte. Você não tem ônibus que deixe a pessoa do lado de casa. Então tem que ter uma Kombi, que não é legalizada. Você tem a questão do gás: abastecimento, que também é um problema público resolvido na “viração”. Você tem aqui o “gatonet”, que a UPP melhorou muito. Quando a Light era uma empresa pública, havia um departamento de relações comunitárias que subsidiava a luz das favelas. Mas a Light colocou um anúncio, um tempo atrás, comemorando o aumento de mais de 10% do faturamento deles graças à UPP.
Logo que descia o carrinho com os corpos dos mortos em conflito, subia o pessoal da Light e da Nextel para legalizar tudo e abrir mercado. Eu sei que o Beltrame é um homem correto, que ele não fez essa bobagem pensando em dar lucro para as empresas, mas o resultado prático é esse. Além disso, passou a existir a necessidade de haver muitos policiais disponíveis, e esse começou a ser também um emprego de pobre – não há uma família pobre hoje que não tenha alguém na área, mesmo na segurança privada. Mas como você faz um projeto para fazer uma intervenção em uma comunidade onde essa economia é importante? Isso não fica sem dono. Em alguns lugares, um pouco disso acabou nas mãos de policiais.
“Precisamos ter um projeto para polícia também.”
Enfim, a integração na favela tem que se dar por serviço. Se houvesse serviço de saúde, cultura, entretenimento, a UPP seria a pedra da sopa de pedras daquela história do Pedro Malasartes: tinha que ser jogada fora depois. É claro que a UPP seria um fracasso, com esse saldo de mortos, não apenas civis, de abusos de autoridade. Quantos tapas na cara? Quanta humilhação? Os policiais também foram submetidos a uma proposta inviável, com essa publicidade que se viu muito no governo do PMDB no Rio de Janeiro. Todo mundo foi atirado nessa aventura. Eu tenho pena dos policiais também, que foram expostos como alvo dentro de contêiner. A melhor coisa que faria era acabar direto com a guerra às drogas e procurar outro padrão. O mundo todo está se dando conta de que foi um enorme fracasso, que só aumentou os problemas. Ainda vamos olhar para trás e dizer: que grande besteira foi feita aqui no Rio. Aquela foi uma gestão da arrogância e da violência, não do diálogo. Uma política criminal para a favela tem que ser feita por alguém que ame a favela, antes de mais nada. Para quem acredita, como Cabral acreditava, que favela é laboratório de bandido, vai haver só isso: uma política sanguinária e ineficiente como essa.
AVF: A mídia foi uma grande entusiasta do projeto das UPPS. Agora, eles parecem querer enterrar o projeto. Como o senhor vê isso?
NB: O projeto já está enterrado. A mídia conservadora nunca diz que teve relação com nada, que estava errada. Depois de 25 anos, talvez, eles assumam o papelão de responsabilidade nesse projeto sangrento, de alta mortandade.
AVF: O senhor é conhecido por defender a legalização das drogas. Há quem diga que a legalização das drogas pode ser a única solução para o fim dos conflitos armados na cidade…
NB: Eu falo isso há mais de 30 anos. O controle pela ilegalidade é um fracasso ensanguentado. Controla-se pela legalidade. Vários estados americanos liberaram o uso recreativo da maconha. Como você vai explicar para alguns ministros desse atual governo, alguns deputados da bancada da bala, por exemplo? Politicamente fazer esse movimento é difícil, porque o peso do conservadorismo, do atraso, da imbecilidade, da imprecisão política é muito grande. Mas há um consenso sobre o fracasso disso: o uso medicinal. Quantos camponeses pobres morreram na região andina por plantarem coca, que é parte cultura milenar local? Quantos garotos morreram nos centros urbanos, nas periferias do comércio de varejo vendendo drogas? O primeiro sinal está dado: a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) já autoriza a produção de medicamento feito a partir de maconha. Estamos importando extrato de maconha da Inglaterra. Nós poderíamos ser exportadores. Nossa balança comercial, só na maconha… A gente recuperaria tudo. A Colômbia vai exportar, estão muito a frente de nós. Nós é que não podemos. É pecado.
“A integração na favela tem que se dar por serviço”
AVF: Ao mesmo tempo em que se fala que o Brasil é o país da impunidade, temos uma das maiores populações carcerárias do mundo. Como a gente consegue pensar a redução da criminalidade não só no Rio, mas no país?
NB: O que nós temos que reduzir é a criminalização. A criminalidade é um fantasma, pois não há a menor pretensão de englobar todas as infrações que foram praticadas. Temos que reduzir a criminalização, mas não nesses termos que ninguém quer diminuir. Você pode começar pelo resultado terrível dessa hipercriminalização que a gente faz. Se eu tenho aqui uma cela penitenciária para 16 mil presos, o preso de número 16.001 tem que sair. Você movimenta e todo mundo gira, algum vai para a prisão domiciliar. Você pode começar por aqui e pensar em um conjunto de medidas. Por exemplo, não usar privação de liberdade em crimes patrimoniais cometidos sem emprego de violência. Por que o furto tem que ser cumprido com pena privativa de liberdade? Existem mil maneiras de reduzir isso. Só os âncoras da TV Globo acham que não. É só comparar com os códigos europeus. Nós temos as maiores penas jurídicas no Brasil, mas todo mundo acha que é pouco.
AVF: E por que todo mundo acha que é pouco?
NB: Porque todo mundo faz educação jurídica com esses professores que eu falei aqui. Aqui existe polícia demais e pessimamente aproveitada. Todo mundo que está em UPP está sendo mal aproveitado e correndo riscos.
AVF: Os policiais das UPPS são muito jovens.
NB: Sim. É uma tragédia que afeta também eles. Precisamos ter um projeto para polícia também. A indústria do controle do crime é uma economia importante, e ela pede mais pena. Ela ocupa desde a hotelaria privativa das penitenciárias privadas, as PPPs (parcerias público-privadas), venda de armas, dispositivos de seguranças como câmeras, tornozeleiras, pulseiras eletrônicas. A indústria do controle do crime é um movimento, e ela tem seus professores de direito, seus jornalistas…
AVF: A paz não vende, não é?
NB: Não, a paz não vende. Tem que ter sempre um medo, um pânico, um inimigo. O inimigo interno na ditadura foi substituído pelo traficante. Depois, veio o terrorismo. Hoje, é o dispositivo de corrupção.
AVF: O senhor acha que pensar a polícia perpassa também por pensar de que maneira se pode despolitizar a polícia? Afinal, desmilitarizar é diferente.
NB: Sem dúvida. Eu acho que é preciso descobrir um destino para a polícia que seja diferente dessa ideia do capitão do mato, que é o desejo das oligarquias, que estão dispostas a financiar. É preciso tirar poder do sistema penal como um todo, ou não vamos precisar de polícia. Ninguém fala do delegado que deu um prejuízo diário na economia brasileira de US$ 70 milhões no caso do escândalo da carne. Ele não foi afastado. É preciso controlar o sistema penal como um todo, não só a polícia. Temos que pensar na estrutura criminal que virou facilitadora da polícia, deixando sua função constitucional. Temos que fazer uma reforma, reequilibrar os poderes, que estão desequilibrados. Temos que despolitizar o Judiciário. A Justiça não é um lugar de combate.
Colaborou Joel Luiz Costa.
Publicado na edição de Abril de 2017 no Jornal A Voz da Favela.