por Adriana Facina (UFF/Observatório da Indústria Cultural)

Tudo que a favela me ensinou,

Tudo que lá dentro eu aprendi,

Vou levar comigo a onde eu for,

Vou na humildade procurando ser feliz

Mesmo com tanta dificuldade

Tantos preconceitos que eu já sofri

Só quero cantar a liberdade

Esse é o trabalho do MC

Levar a voz das comunidades

Aonde o nosso Funk atingir

Pois o favelado de verdade

Vai ser favelado mesmo se sair dali.

Por isso…

Sou favela

Eu fui

E sempre serei favela

Sei que na favela a chapa é quente

Pois lá já perdi vários irmãos

Por isso o nosso papo é diferente

Sem apologia a crime, droga ou facção

Pregamos a união das favelas

Sabemos a força que todas elas juntas  têm

Por isso que vou  em todas elas

Vou sem simpatia sem descriminar ninguém

E são tantas as comunidades

Pena não ter tempo de falar todas aqui

Mas vai um abraço na humildade

De 2 favelados

Junior e Leonardo MCs

(Pra sempre favela,  MCs Junior e Leonardo)

A Kombi com passagem a 1,50 nos deixou na entrada da Grota, uma das favelas do Complexo do Alemão. O dia estava cinzento e logo de cara nos deparamos com os fuzis da Força Nacional de Segurança (?) há mais de um ano, que ocupa a favela, apontados em nossa direção e na de todos que passavam. Tensão nos rostos uniformizados atrás dos sacos de areia que servem como trincheiras improvisadas de uma guerra fabricada. Quem são os inimigos, "os alemão", na gíria carioca?

Lá no Alemão, a resposta a essa pergunta está inscrita nas paredes das casas, cravejadas de balas de  grosso calibre, com alguns rombos que nos permitem entrever o interior das habitações e dos estabelecimentos comerciais. Fuzis que custam mais de 10 mil reais e munição cara contrastam com as valas negras sobre as quais caminhamos na subida do morro. Quanto o estado gasta alimentando o ventre incansável da indústria bélica fazedora de mortes ao invés de investir em educação, saúde, cultura, habitação?

No caminho, comércio funcionando, feirinha, crianças nas ruas, adultos bebendo sua cervejinha dominical, alguns fazendo churrasco. Uma mistura de sons e ritmos: forró, funk, pagode, Roberto Carlos. Em qual lugar do mundo isso é possível? Lembro de um passeio que fiz nos anos 1990, também num domingo, pelas ruas de Veneza. Foi quando descobri como a música era importante no cotidiano das cidades brasileiras. Lá na Itália eu consegui andar horas seguidas sem ouvir uma música sequer. Em pleno domingo, nenhuma sonoridade escapava das casas, nada se ouvia nas ruas. Meus ouvidos estranharam aquele silêncio que me fez refletir sobre nossa musicalidade.

Na favela, a concentração de pessoas em espaços físicos exíguos, fruto de uma desigualdade social que se expressa também nos pedaços de terra e ar aos quais cada um tem direito, faz com que essa sonoridade exploda. Os sons musicais, somados aos roncos das motocicletas dos mototaxistas, vozes, panelas batendo ultrapassam as finas paredes e misturam casa e rua. Fico imaginado quando esses sons são substituídos pelos barulhos de tiros, por granadas explodindo e pelos estrondos provocados por toda a parafernália
feita pra moer gente.

No alto do morro, chegamos na casa do morador que íamos entrevistar, pai de um jovem MC que conheço, para um documentário sobre funk de um diretor italiano a quem tenho auxiliado nessa produção. Na casa modesta, que possui de eletrodomésticos apenas uma televisão e um ventilador, muito escura e úmida, de paredes tão finas e com frestas que nos permitiam ver a paisagem ouvimos muitas histórias. Aos 50 anos, nosso entrevistado vai trabalhar todos os dias 4h da manhã e só volta ao final do dia. Na sua rotina, sacos
de farinha carregados nas costas de 3 em 3, totalizando 75 quilos a cada viagem (são muitas durante o dia), vergando um corpo que mal passa dos 60 quilos. Trabalho incerto, ganho mais incerto ainda. Dinheiro dado aos filhos, às vezes não sobre pra comprar comida e aí é torrar farinha no óleo e ver televisão a noite toda, pois a fome não dá chance ao sono. Seu Francisco explica que a alta do preço dos alimentos dificultou ainda mais sua vida, pois a demanda por farinha diminuiu e ele tem tido menos trabalho, voltando pra casa muitos dias sem ganhar nem o dinheiro da passagem.

Seus fins-de-semana são dedicados a dormir, ver TV, tomar uma cachacinha se for possível. Descansar o corpo e anestesiar a mente pra agüentar uma rotina que até mesmo narrada é insuportável, transborda em lágrimas compartilhadas e escondidas nos olhos de cada um de nós ali presentes.

Na fala mansa, seu Francisco diz que a única coisa que atrapalha seu cotidiano de trabalho é quando tem tiroteio. Como sua casa é no alto do morro, nesses casos ele tem de correr e "aí, vocês já sabe correu, aqui no morro, é bandido". Nessa frase está resumida a política de insegurança de nosso estado. Massacre cotidiano da população favelada. Vidas que não valem nada. A experiência diária do preconceito, da suspeição, da possibilidade de virar estatística a contar os milhares de mortos pela violência estatal nos
últimos 6 meses. Ameaça legalizada na figura do mandado de busca coletivo, mostrando que a fragilidade dos lares onde habita a pobreza não está só nas suas paredes reais, mas também nas fluidas barreiras simbólicas da criminalização dos pobres.

No aspecto mais perverso desse enredo, a aplicação da lógica selvagem do mercado entre iguais, mas concorrentes. Na disputa por partes pequenas de um grande lucro que vai para mãos legais, facções resguardam essas barreiras que os de cima querem intransponíveis. Na territorialidade real, alemão bom
é alemão morto, de preferência com tortura antes e esquartejamento depois.

Na descida, pensando sobre tudo que ouvimos, passamos por um pastor que pregava no meio da rua e que dizia: "temos de nos unir e denunciar as dificuldades que passamos aqui". Sonhei de olhos abertos com um movimento de união das favelas, como se a música de Júnior e Leonardo estivesse na minha cabeça, capaz de produzir uma sociedade na qual jamais um favelado visse outro favelado, com quem compartilha experiências de vida e sofrimento, como alemão.