No início deste mês, Otávio Júnior, o Livreiro do Alemão, lançou sua quinta obra de literatura infantil. Intitulado “Morro dos Ventos”, o livro conta a história de uma menina obrigada a lidar com a perda de sua melhor amiga numa situação violenta. Acompanhada pelas delicadas ilustrações de Letícia Moreno, a história aborda temáticas que perpassam pela realidade e pelo imaginário de crianças periféricas, de forma lúdica e cuidadosa. Sua trajetória une arte, principalmente a literatura e a escrita, ao ativismo social.
Otávio gosta de descrever a sua própria história como “um conto de encantamento ambientado na favela”. Seu primeiro contato com a literatura foi inusitado: no meio do caminho para um campinho de futebol no complexo do Alemão tinha um lixão. E no lixão tinha um livro. Esse contato na infância despertou uma paixão que levou ele a buscar mais livros. Primeiro a biblioteca da escola, depois a biblioteca do bairro.
Anos mais tarde, a paixão virou uma inquietação: “Eu tinha um grande interesse por livros, porém os meus primos e os meus vizinhos não tinham esse mesmo interesse”. Da inquietação, nasceu o “Ler é 10 – Leia Favela”, projeto que ele criou em 2006 e onde iniciou sua trajetória como promotor de leitura, atendendo aos complexos da Penha e do Alemão.
“Criar o ‘Ler é 10’ foi criar um laboratório de ideias e de experiências. Me ajudou bastante a me desenvolver como autor, como promotor e mediador de leitura, como pensador, porque são momentos que eu analiso muito a questão do leitor, a questão do professor, do educador social. As questões ligadas também a surpresa, à emoção do leitor quando eles recebem os livros. Isso tem ajudado bastante no meu desenvolvimento como pensador e como fazedor de livro”, contou o Livreiro que, apesar da referência ao Alemão, nasceu no complexo da Penha.
“O apelido ‘Livreiro do Alemão’, que, na verdade, virou sobrenome, surgiu a partir de uma matéria que saiu no jornal em 2008, ano em que eu fui vencedor do ‘Prêmio Faz a Diferença’. Na matéria, veio estampado: o Livreiro do Alemão”, explica. Além disso, era uma brincadeira que fazia no seu blog na época. O best-seller do momento era “O Livreiro de Cabul”, de Åsne Seierstad. “Se tem o livreiro de Cabul, eu sou o livreiro do Alemão! Eu gosto muito de fazer brincadeiras com títulos literários. O meus títulos, de certa forma, eles brincam com algum título de livro”, conta.
Do blog ao jornal e do jornal ao título do livro que circulou o Brasil inteiro, “O Livreiro do Alemão” é a primeira publicação oficial de Otávio. O livro conta como foi a experiência dele promovendo a leitura num território que encarava um período bastante violento, com confrontos frequentes. A invasão de “pacificação” do Complexo do Alemão, seguido de implementação das UPPs, ocorreu em 2009. “Eu, ali, no meio dos confrontos, circulava as comunidades para levar livros e pra amenizar também a dor de muitas crianças, especialmente crianças que não podiam ir pra escola por conta dos confrontos. Então a literatura naquele momento era uma grande aliada das crianças”, relembra.
A articulação com outros projetos sociais relacionados a artes e esportes teve papel importante no ativismo que desenvolveu. “Num primeiro momento, a minha dedicação era quase que exclusiva, como promotor e mediador de leitura. Eu pensava em todas as questões dessa militância na promoção de mediação de leitura, montando bibliotecas comunitárias, auxiliando projetos nas comunidades, projetos de esporte, de balé, de dança, de teatro, de cinema. Então, eu ia nesses projetos, nesses espaços para falar sobre literatura”, diz.
Foi intensificando os estudos na área e intensificando as atividades literárias nas comunidades que o escritor teve um estalo: “eu percebi que muitas crianças tinham gosto pela leitura, porém elas não se viam nos conteúdos literários. Foi aí que eu decidi criar uma coleção chamada ‘Coleção Lá do Beco’, que são histórias infantis ambientadas na favela”.
Vida de escritor
Lançado em 2013, o primeiro livro de Otávio Jr. na coleção foi “O Garoto da Camisa Vermelha”, que traz uma releitura sobre sua própria história, agora voltada ao público infantil. Em seguida, foi “O Chefão lá do Morro”, de 2014, que tem uma virada de perspectiva quando o leitor descobre quem é o tal figurão do título. O carteiro, que chega devagar na vizinhança para não ter conflito com o chefão, dá a dica.
A coleção foi um marco. Depois de publicá-la, o autor passou a se dedicar mais a projetos literários voltados para infância, sempre com a periferia como cenário e com as crianças da favela como protagonistas, principalmente crianças negras.
Em 2015, ele participou do projeto “Mapas Literários – O Rio em Histórias”, livro que reuniu histórias de muitos autores de bairros diferente do Rio de Janeiro. “No ‘Mapas Literários’ eu contribui com um conto que também reflete a questão da literatura na periferia e que é também em homenagem ao meu bairro, às histórias que eu vivenciei junto com amigos”, disse.
Em 2019, lançou mais duas obras infantis: “Da Minha Janela” e “Grande Circo Favela”.“No ‘Da Minha Janela’ eu falo sobre a janela que é sempre muito potente. A janela que é um grande portal pras pessoas observarem a vida, observar as movimentações. Sobretudo, é uma visão de crianças que moram na favela”. O processo para a escrita do livro “Da Minha Janela” foi singular. O escritor conta que teve o cuidado de circular por várias favelas do Rio de Janeiro e adentrar diversas janelas.
“Por exemplo: as crianças que moram Complexo do Alemão e no Complexo da Penha têm uma visão muito ampla da igreja da Penha, assim como as crianças da Maré. As crianças que moram na Mangueira, no Morro dos Macacos, nos morros da Tijuca, têm visão do Maracanã, as crianças que moram nas favelas da Zona Sul Rocinha, no Vidigal, no Chapéu Mangueira, no Cantagalo, elas têm a visão do mar. Então, eu fiz uma junção de todas essas visões e compus o “Da Minha Janela”, relatou.
Já no “Grande Circo Favela”, o ativista faz uma homenagem ao primeiro palhaço negro do Brasil, Benjamin de Oliveira, e nos apresenta sua primeira protagonista negra. “Essa menina encontra um palhaço perdido no meio da favela e o convida a montar um circo lá. Juntos, eles começam uma jornada de empreendedorismo, de sonho e de compartilhamento de ideias”.
Esse ano, ele lançou o “Morro dos Ventos”, abordando a questão da violência na favela através da história de uma menina que perdeu sua melhor amiga. “Essa menina sente falta da amiga e resolve convocar outras crianças pro alto de um morro onde que o vento circula muito forte e essas crianças elas gritam por paz, elas buscam pela paz, todas juntas. É um livro que eu tento tratar a questão da perda de uma maneira bem poética, bem lúdica”.
O “Morro dos Ventos” traz também um debate em relação às muitas crianças que infelizmente perdemos em confrontos, nas comunidades, na nossa cidade. Segundo o laboratório de dados Fogo Cruzado, apenas no primeiro semestre de 2020, 17 crianças e 24 adolescentes foram baleados na Região Metropolitana do Rio. Destes, 6 crianças e 11 adolescentes morreram. Em 2019, foram 24 crianças, das quais 7 não resistiram. “Atualmente é o que eu faço. Tô extremamente dedicado a essa questão de desenvolver projetos literários voltados para infância na periferia”, afirmou.
Processo criativo, pandemia e parceria pai e filho
O trabalho do Livreiro do alemão de circular por escolas, por bibliotecas, de participar de eventos literários para falar sobre o processo de escrita e criação, foi interrompido pela pandemia do coronavírus. Mas ele conta que as crianças participam ativamente desse processo, uma delas em especial: seu filho de 12 anos, João Vitor. “Consulto muitas crianças nesse processo. Tento conectar também meu filho nessas ideias. Meu filho é um parceiro de visita a museus, visita as exposições, de cinema. A gente tenta sempre conversar sobre os processos artísticos. Eu gosto muito de tentar aguçar a curiosidade dele, das crianças, no fazer literário, num fazer artístico, de conectar a criatividade e a imaginação”, comentou.
Otávio pretende ampliar o contato com seu público alvo, que vê como parte vital do livro: “Eu queria muito ter mais feedbacks e poder conversar com mais crianças. Tento me conectar com filhos de amigos. Tô buscando uma maneira de tentar aumentar essa conexão, conversar mais, ouvir mais, de tentar me encontrar mais. Agora que há a questão da pandemia, presencialmente é mais complicado, mas penso sim em ampliar essa conversa. O público me ajuda bastante. Acho que é verdade que o público é a figura mais importante desse processo da indústria do livro, porque sem o público não existe livro. Sem público não existiria o autor”, constata.
Ele acredita que é possível desenvolver projetos literários no contexto atual de pandemia, mas é preciso uma mobilização coletiva, desenvolvida de forma ampla com múltiplos atores. Enquanto não acontece, ele apoia um clube de leitura no Complexo do Alemão: “um trabalho incrível que tá sendo feito lá, de uma jornalista com a mãe, que é educadora e tem uma escolinha no complexo já há muitos anos. A ideia é ser um clube de leitura que circule os livros, os títulos”.
Transformação e novas narrativas
“Eu venho me dedicando já há muitos anos. Pra você ter uma ideia, oficialmente o projeto de promoção de leitura que eu desenvolvia é de 2006. Então, são mais ou menos 14 anos dedicado a literatura periférica”, calcula.
O escritor faz questão de dizer que é “prova viva” do poder transformador da leitura. Influenciado pela conexão com o mundo de possibilidades que o livro oferece, ele afirma que “é uma questão muito pessoal. Eu costumo dizer que eu sou uma experiência, sou uma prova viva do que o livro e a leitura podem fazer na vida do ser humano. Eu me conectei com o livro, me conecto com a leitura, e, hoje em dia, eu me me conecto com o universo literário, como a biblioteca, como a livraria, como autores, como ilustradores, enfim, todo um ecossistema ligado ao livro”.
No entanto, foi somente anos depois do contato com o primeiro livro naquele lixão, que a ficha caiu. “Muito tempo depois que fui me dar conta da importância daquele livro na minha vida. Eu costumo dizer que a minha história é um conto de encantamento ambientado na favela: a história de um menino que circula no meio do lixão pra chegar num campinho de futebol e, ali, encontra um livro que muda essa vida, essa trajetória. Acho que me dei conta alguns anos depois, não só a importância daquele livro, como a importância daquele momento”.
Para o Livreiro, o momento atual é o de pensar de que forma as histórias que circulam pela favela podem se tornar projetos literários, e tem se empenhado para publicar títulos de literatura infanto-juvenil na favela. “Nós temos muitas histórias pra contar. Nós podemos desenvolver as nossas narrativas. E podemos brigar também por um espaço nas livrarias, nos eventos literários, podemos brigar por espaço na mídia. Porque o que nós propomos é literatura. Fazer literatura e uma literatura de qualidade. Uma literatura na qual uma parcela da população se veja inserida nesse contexto”, afirma o escritor. Não é a toa que a questão da representatividade vem ganhando espaço nos debates.
Sua pretensão é ir na contramão da representação estereotipada da favela, que vemos na grande mídia com certa frequência: “A nossa ideia também é mostrar pra uma outra parcela da população, que vê a favela nos meios de comunicação sempre de uma forma muito hostil, muito violenta, que na favela tem sonhos. Na favela tem histórias. Na favela tem pessoas que não só batalham diariamente pela sobrevivência, mas que se divertem, que estudam, que tem projetos de vida, que querem transformar essas vidas. Que na favela tem curiosidades, que na favela tem humor, sabe? Não, ela não contribui só pras questões culturais, através do samba, através do funk, através do esporte. A favela também pode contribuir pra cultura, pra educação, porque a favela tem jovens crianças que sonham em ser cientistas, em ser astronautas, em ser bailarinas, em ser médicas”.