O Uruguai tem sido, para brasileiros e latino-americanos, uma espécie de terra prometida onde utopia e realidade se encontram. Este pequeno país localizado entre os dois gigantes da América do Sul – Brasil e Argentina – ousou, nos últimos anos, construir um caminho próprio, com mais democracia e direitos. Estabilidade política, uma Frente Ampla de Esquerda que caminha para completar 16 anos no poder; ampliação dos direitos individuais e comportamentais, com medidas inovadoras no cenário da América Latina, como a legalização do uso e do porte da marijuana; a força simbólica do ex-guerrilheiro, preso político e presidente da república José “Pepe” Mujica, liderança política global que projetou o seu país no mundo, e continua vivendo de maneira simples, dirigindo o seu Fusca e plantando hortaliças na sua pequena chácara nos subúrbios de Montevidéu.
Saindo de Buenos Aires com destino ao Uruguai, numa mistura de expectativa e desejo, eu me perguntava quais seriam as diferenças entre o Uruguai ideal e o real. Era a primeira vez que visitava o país, e, antes de me permitir desfrutar, ainda que por pouco tempo, os ares de Montevidéu, me restava a última missão desta gira pelo sul do mundo: participar do primeiro Encontro Nacional de Cultura Viva Comunitária do Uruguai, que aconteceu nos dias 16 e 17 de setembro.
Nesta viagem, consolidei a percepção de que, apesar das diferenças e das barreiras políticas, econômicas e culturais, há um processo irreversível de integração da América Latina pela via da cultura, especialmente aquela dos bairros, periferias e comunidades rurais e urbanas. Este conjunto amplo e diverso de experiências aponta para a construção de uma nova cultura política, que pode ser parte de uma reinvenção da esquerda no século XXI. Pode parecer pretensioso. Eu diria que é ambicioso. Mas, de fato, la Cultura Viva Comunitaria no vino a decorar la democracia, sino a transformarla.
Após 4 horas de viagem entre barco e ônibus, sou recebido no terminal rodoviário de Montevidéu por Daniel Cordones, um dos articuladores da Rede de Cultura Viva Comunitária do país. Há um chiste (piada) onde dizem que quando um uruguaio recebe alguém em sua casa, ele se deita no chão e oferece a própria cama para a pessoa dormir. Exatamente assim aconteceu comigo! Foi comovente receber o carinho, a solidariedade e a amizade de Daniel e dos companheiros e companheiras uruguaios, que em diversos momentos agradeciam a vinda dos representantes dos países presentes (além de mim, havia também uma delegação de Córdoba, Argentina, que viajou 24 horas de carro para participar do Encontro).
Neste clima afetivo e amistoso, participamos das atividades, debatemos nos grupos, falamos em uma mesa, fomos a um sarau em um punto de cultura (com espetáculo de bonecos, 3 bandas de vários estilos e uma rádio comunitária transmitindo tudo ao vivo), tomamos mate, bebemos fernet, comemos asado de cuero, fumamos porritos e terminamos o encontro em uma tarde ensolarada de domingo, celebrando a unidade entre nosotros, o Uruguai e a pátria grande latino-americana.
Cultura e marijuana
E, finalmente, pude conhecer um pouco da bela e acolhedora cidade de Montevidéu. Com pouco mais de 1 milhão de habitantes, largas avenidas arborizadas, arquitetura histórica bem preservada, belos parques e as ramblas, calçadões de pedestres em frente ao “mar” de Montevidéu – o Rio da Prata que se abre para o oceano e circunda a cidade. No domingo à noite, participamos de um cortejo de candombe, o popular ritmo afro-uruguaio, verdadeira orquestra de tambores que arrastou uma pequena multidão pelas ruas do bairro onde estávamos. Existe carnaval de rua em Montevidéu, e, em fevereiro, os candombes, murgas e comparsas tomam conta da cidade. Diferente da Argentina, o Uruguai possui uma forte presença do povo e da cultura negra, e isso se vê na música, na fala, no corpo, nas ruas.
A presença econômica do Brasil é forte. Várias empresas brasileiras atuam no país. Todo mundo meio que arranha um português e arrisca umas palavras ao saber que somos brasileiros. Aprende-se português nas escolas. Mas, culturalmente, somos um enigma. O brasileiro, mesmo aquele com alto nível econômico e sociocultural, ainda vê os países da América Latina de uma forma meio estereotipada, folclórica, superficial. E, na maioria dos casos, a recíproca é verdadeira. Mas há no Uruguai um nível de informação e conhecimento sobre a situação política brasileira muito maior do que o nosso em relação a eles.
E, sim, pode-se fumar marijuana sem problemas, caminhando nas ruas, sentado nas mesas da calçada dos cafés, nos bancos da praça, nos parques. Passar na frente de uma delegacia, fumando uns porros, cumprimentar e ser cumprimentado pelos policiais de plantão e seguir caminhando tranquilamente com um grupo de amigos, para mim, foi algo extraordinário. Para os uruguaios, algo normal, tranquilo. E isso não significa um “liberou geral”, uma permissividade absoluta. Ao contrário: há uma política rígida de antitabagismo e restrição ao fumo em ambientes fechados (do cigarro careta, mas também da marijuana – na rua pode, mas se fumar dentro de um bar ou restaurante você pode ter problemas). A legislação de trânsito também é severa. Dirigir embriagado é algo impensável, a prioridade nas ruas é dos pedestres e os carros param para você atravessar na faixa. Deixar um carro mal estacionado por alguns minutos pode lhe custar multa e dor de cabeça. As ruas em geral são limpas, não há engarrafamentos, os indicadores de violência são baixos e a expectativa de vida é alta, acima da média dos países da América Latina.
Neste contexto de instabilidade e retrocesso no continente latino-americano e no mundo, o soft power uruguaio é um ativo importante para o país, que vive uma realidade distinta e um processo político e cultural muito interessante. Para nós brasileiros, vale a pena conhecer e se aproximar mais deste vizinho cordato, alegre e hospitaleiro que temos aqui ao lado, mas com quem ainda nos relacionamos pouco. Vamos arriba!