Será exagero afirmar que um novo Brasil surge das urnas destas eleições; afinal, a direita predomina, mas é evidente o avanço pontual das esquerdas em vários pontos, entre eles São Paulo e Recife, onde Marília Arraes, neta de Miguel Arraes, deve derrotar o primo João Campos, bisneto do mesmo líder político cassado no golpe de 1964. Em São Paulo, dificilmente Bruno Covas perderá, mas Guilherme Boulos já ocupa o lugar onde o Partido dos Trabalhadores brilhou outrora com sua estrela solitária desde a fundação nos remotos anos 80 do século passado.
Quando falamos em século passado é apenas para reforçar a defasagem o discurso petista na pauliceia desvairada da atualidade em que as massas trabalhadoras da indústria do ABC se diluem nas novas relações trabalhistas, o consequente desmantelamento sindical e a quantidade de desempregados e informais aumenta a cada dia a população em situação de rua – eufemismo para “morador de rua”, tal e qual “afrodescendente” é para “negro”.
Por falar nisso, eis aí outro avanço significativo na política institucional brasileira emergente das urnas do 15 de Novembro. Um em cada cinco vereadores eleitos é negro e três em 10 prefeitos também. Considerando o total da população negra e parda, é pouco, mas se olharmos em retrospecto é inegável a conquista de espaço. Em 300 anos de história de Curitiba, por exemplo, é a primeira vez que se elege uma vereadora negra, a historiadora Ana Carolina Dartola, terceira mais votada da cidade, com quase 8.500 votos.
Em Joinville, no norte de Santa Catarina, também uma mulher negra conquistou vaga na câmara municipal: Ana Lúcia Martins, professora aposentada e, como a xará curitibana, liderança na cidade e no estado. Para quem propaga o fim das esquerdas e em especial do PT, como Jair Bolsonaro e seus fedelhos revoltados, Ana Lúcia representa também a volta do partido à representação política municipal, para a qual não tinha elegido nenhum vereador em 2016. Talvez como preço a pagar pela ousadia, ela tem recebido ameaças de morte nas redes sociais em linguagem sem margem de dúvida: “agora só falta a gente matar ela e entrar o suplente que é branco”.
A relevância da eleição das duas vereadoras é ainda maior quando as situamos no Sul, onde o racismo estruturante revolta até brancos não radicais. A região é o foco da colonização europeia no império, quando D. Pedro II abriu as fronteiras e aqui aportaram alemães, poloneses, italianos e outros, depois que a lei Eusébio de Queiroz, de 1850, proibiu o tráfico de negros escravizados no país. O imigrantes brancos ocuparam gradativamente suas vagas no campo, em especial na Região Sul cujo clima mais se assemelha ao de suas origens. Ao racismo de berço, eles somaram a disputa pelo mercado de trabalho para discriminar ainda mais os negros brasileiros.
Não surpreendem as ameaças e nem mesmo a perseguição à população negra nas cidades sulistas brasileiras, as mais conservadoras e reacionárias do país, onde a direita sempre vence eleições e onde no período nazista alemão se concentrou o maior número de simpatizantes por estas bandas. Um professor de Pomerode, em Santa Catarina, Wander Pugliesi, teve de desistir da candidatura a vereador depois de divulgada a foto aérea de sua piscina com uma enorme cruz suástica desenhada em azulejo no fundo. A foto foi feita do helicóptero da polícia que apurava um crime na cidade vizinha de Rio dos Cedros, em 2014, e causou problemas seis anos depois, quando o professor pretendeu ingressar na política pelo PL local.
A governadora em exercício de Santa Catarina, Daniela Reinerh, do PSL, o partido pelo qual se elegeu Bolsonaro, viu-se na contingência de ter de renegar as ideias do pai, nazista impenitente, por razões políticas, ao assumir o cargo do governador afastado Carlos Moisés. Ela é pecuarista e advogada, começou a vida como policial da PM catarinense e não possui qualquer laivo progressista. Altair Reinerh é defensor do regime nazista, nega o holocausto e acha que “Hitler mudou a Alemanha”.
O nazismo brasileiro não é privilégio do Sul, se espalha por vasto território em que vigora o pensamento antidemocrático, sobretudo nos estados do Sudeste e do Centro-Oeste, de forte colonização estrangeira. O filme Menino 23, de Belisário França, é exemplar e didático na retratação do nazismo brasileiro, mostrando a captura de meninos negros no Rio de Janeiro para trabalhar numa fazenda no interior paulista onde eram fabricados tijolos com a suástica gravada. A fazenda pertencia à família Rocha Miranda, homenageada com o nome de um subúrbio carioca, como tantos logradouros que lembram escravagistas, fascistas e nazistas pelo Brasil afora.
É neste contexto que a luta antirracista ganha especial importância e vitórias pontuais como as das duas Anas em Curitiba e Joinville se destacam nacionalmente. É urgente proclamar ambas as conquistas devidamente contextualizadas, para que não pareçam apenas a eleição de duas negras, mas sejam inseridas na história do racismo brasileiro e na luta contra ele para que se projetem além das nossas fronteiras, despertem atenções internacionais e não se repita o trágico exemplo de Marielle Franco, vereadora do Psol, em março de 2018 no Rio de Janeiro.