Uma investigação sobre as mudanças culturais, sociais, linguísticas a partir da produção dos rappers em países lusófonos: como se organizam quanto ao processo de criação artística e propagam sua arte nos media, na internet e no mercado fonográfico.
Atualmente no planeta existem cerca de 230 milhões de pessoas que falam o idioma português em 8 países e em 4 diferentes territórios. Em cada um desses lugares existe um jovem rapper rimando, usando sua própria poesia e ritmo para expressar seus anseios e necessidades, sonhos e metas, preocupações e impressões sobre a comunidade e o mundo em que está inserido.
Originalmente o rap surgiu no fim dos anos 1960 em guetos novaiorquinos, mais precisamente em conjuntos residenciais habitados por afroamericanos, imigrantes latinoamericanos, asiáticos entre outros. Entretanto, foi de uma tradição jamaicana que o canto falado chegou aos Estados Unidos. Os toasters improvisavam versos em trechos instrumentais de músicas da Jamaica nas chamadas block parties; tal cultura aos poucos foi absorvida em bairros como Bronx, Harlem e Brooklyn surgindo assim a figura do mestre de cerimônia, ou seja, o mc: um animador de festas que utiliza-se de versos de pronto e frases de efeito para criar o elo entre platéia e música.
O rap, como hoje conhecemos foi fundado em 1976 com o grupo Furious Five. Tratava-se de um desdobramento da figura do mestre de cerimônias, porém constituído em sua poética por versos mais elaborados a partir de temas pertinentes àquele contexto social. Aos poucos ritmo e poesia (o significado do termo rap) tornou-se um estilo musical consistente, vendável, internacional e, conseqüentemente, acessível e facilmente identificado por subúrbios do mundo. Afinal, a falta de acesso aos bens culturais básicos a qualquer cidadão proporcionou ao rap um campo maior de divulgação e de comunicação direta, visto que as reivindicações eram quase as mesmas em regiões pobres ao redor do planeta.
Não foi difícil o rap ser absorvido e produzido por outros jovens além das fronteiras norteamericanas. O contexto social, a precariedade, a ausência de políticas públicas em bairros pobres formavam uma espécie de estatuto para a existência do rap em outros idiomas, mas adequando aos aspectos históricos de cada nação. Não foi diferente nos países de língua portuguesa.
Todavia, há um paradoxo entre a colonização desses territórios pela expansão marítima/comercial portuguesa, que conecta estes países pela língua, transformando o rap produzido hoje nessas nações curiosamente parecidos, e as alteridades de cada região, resultante das diferenciações produzidas em cada região, e da territorialidade da cada um desses países, e as diversas expressões da língua portuguesa, a última flor do Lascio. Inculta, bela e plural. Nas identidades múltiplas, um mosaico de proximidades e afastamentos na lusofonia da diáspora africana, tem no rap um vasto campo ainda a ser explorado, acadêmica e cotidianamente.
Repente, embolada, desafio, samba de breque, Jair Rodrigues, Wilson Simonal… Parece que há um encaixe entre a língua portuguesa e a forma “rapper” de se expressar apresentada em outras manifestações musicais na língua de Camões, Cartola, Agualusa, Drummond, Jorge Amado, Pepetela…
Pode-se entender esse processo todo enquanto um dos fenômenos do processo de fluxos culturais das diásporas dos afrodescendentes, com idas e vindas pelo Atlântico, entre a África, as Américas, a Europa e Ásia, sobretudo a partir dos mecanismos engendrados pela globalização. Paul Gilroy fala mesmo em um Atlântico Negro, com histórias e deslocamentos das culturas africanas da diáspora colonial que se reconfiguram e retornam à África provenientes da américa, saem novamente da África, retornam da Europa para a África, da Europa para a América, e assim por diante. Podemos entender o rap oriundo da cultura urbana negra “estadunidense” que se expressa em língua portuguesa como um dos fenômenos do Atlântico Negro.
A questão da exploração portuguesa nessas outrora colônias e a mistura entre os povos, os estilos de canto falado dessas nações, produzidos há séculos atrás, tais como o trovadorismo, o griot, o repente podem ser elementos pertinentes para que o discurso desses rappers em países lusófonos fossem constituídos por versos tão semelhantes ante às mazelas sociais às quais cada país sobrevive. Sobretudo no rap: estilo musical que além de ter sido fundado sobre a ausência do conhecimento de notas musicais ou mesmo não havendo a necessidade de aprofundamento acadêmico é a oratória que fortalece o ritmo; a força discursa das rimas e poética é o que proporciona ao ouvinte o fator essencial de sensibilização – o despertar de consciência à luz dos versos de outro que denuncia, questiona e sugere formas de combate aquilo que o oprime.
Hoje o que eram colônias viraram países, e os costumes se misturaram de tal forma que cada qual tem sua maneira de expressar a língua portuguesa. Sofrendo influências do mundo inteiro, o português falado na terra-mãe, Portugal, já não se assemelha com o que estamos acostumados a ouvir no Brasil, por exemplo. Sotaques, entonações, formas de organizar o raciocínio e a escrita. Diversas culturas diferentes agregam e contribuem para um mesmo idioma.
Se imaginarmos a força da oralidade na cultura brasileira, na melodicidade e compatibilidade do rap com a língua (além do gosto e aceitação da juventude), a tradição de outros ritmos musicais e nossa inserção no conceito de diáspora, o rap pode ser utilizado como ferramenta de criação artística e produção de conteúdos em sala de aula em nossas escolas, não apenas em aulas de língua portuguesa ou artes, mas em história, geografia, ciências, (etno)matemática etc. Imaginemos que uma ala de compositores de uma escola de samba é capaz de criar e desenvolver belíssimos sambas a partir de conteúdos trazidos por um carnavalesco para desenvolver o enredo da escola. E são vários sambas que disputam um concurso que aboradam temas com temas históricos, políticos, sociais…
A música popular já tem a capacidade de abordar temas do cotidiano. Sempre teve. Ora. Os conteúdos trabalhados nas escolas fazem parte da vida cotidiana dos alunos e não há porque não serem trabalhados também de forma criativa e estimulada.
O rap, como outras manifestações culturais, pode ser também elemento para trocar referências entre escolas de diversas regiões (até de países diferentes), caso tenhamos a inclusão das modernas tecnologias da comunicação asseguradas às escolas.
A vida de jovens rappers em países lusófonos é a melhor maneira de demonstrar as mudanças do idioma em nosso cenário contemporâneo e globalizado. Estrangeirismos se misturam aos dialetos, emprego “errado” de certas expressões se torna neologismo, o que até então era “errado” hoje pode ser questionado como “correto” no uso da língua?
O Manifesto Antropofágico Oswaldiano transcende a Terra Brasilis e engole e expele uma lusofonia global e local simultaneamente.
Por Vinícius Terra Luccas (professor de língua portuguesa e produtor do Festival Terra do Rap que reúne artistas de todos os países lusofonos) e Rafael dos Santos (Prof. Adjunto UERJ e Especialista em Regulação/Ancine).