A absorção de um bom espetáculo resulta na impregnação do conteúdo, informação e imagens que são transmitidos nele. Do outro lado está a vivência do processo artístico de criação por parte dos seus atores, que, nele, produzem a si próprios e a sua cultura.
Nada mais exuberante em plasticidade que a apresentação das escolas de samba na Marquês de Sapucaí. A pletora excessiva de luzes, cores, adereços e timbres nos desfiles tem como primado visibilizar a opulência de uma cultura, a das tradições pretas no Brasil, e um território específico: a favela.
O processo da confecção da liturgia final na Sapucaí reatualiza a sua autoimagem. Os espectadores nas arquibancadas, por outro lado, emolduram uma aquarela de imagens e representações que são misturadas com muitas outras além do samba, como sobre o que é a “favela“, ou o que é o “carioca da favela“, por exemplo.
No entanto, existe outros personagens à margem do espetáculo, que estão alheios a este processo e às próprias representações sobre as comunidades, ou favelas. Esta margem desfila num viaduto localizado atrás das arquibancadas do Sambódromo, estão lá nos dias dos “desfiles oficiais” para assistirem pela fresta o processo do qual não tiveram acesso. Mas desfilam juntos com outras representações típicas das comunidades, porque “são a comunidade”.
No viaduto 31 de março, uma favela dentro dela
Convido vocês a conhecerem o Rio de Janeiro profundo, se não quiserem entrar afundo na zona Norte ou Baixada, é só pintar no Viaduto 31 de Março nos dias dos “desfiles oficiais” da Sapucaí.
Coisa pra quem não conhece a favela profunda da ZN além de Manguinhos, pra quem não conhece dentro, fundo, pois é sempre mais fundo, irmão, e os Brasis estão todos lá. Os Brasis na favela. O Brasil do interior na favela. No interior e à margem da imagem dela. E mais pobres e mais ricos do que a imagem dela. Ela que acolhe a todos.
Ela que se move, caminha e destila os extratos da desigualdade em todas as suas margens.
Etnógrafos… não, etnógrafos certamente nunca viram. Cariocas boa parte não conhecem. Vocês precisam circular pelo RioProfundo, FavelaLadoB, não importa o nome, os que circulam o viaduto pequeno Santa Efigênia da favela preta do Rio atrás do Sambódromo.
Conhecido como Viaduto 31 de Março, fechado sentido Laranjeiras, para a apreciação espreitada e marginal dos desfiles das Escolas de Samba e, no domingo último, das Campeãs. Túnel fechado sentido Zona Sul, porque o sentido é Norte mesmo, irmão. Ah, 31 de Março foi o dia Golpe Civil-Fascista-Militar de 1964, não esqueçamos. A favela “oficial” está em desfile na Apoteose.
Do outro lado, outra apoteose. Tem três camas elásticas para as crianças de divertirem. Por lá circulam moradores das comunidades vizinhas, como Santo Cristo, Providência, e além, da zona norte e RioProfundo.
Por um alambrado em forma de colmeia dá-se a vista ao acesso das escolas de samba aos seus desfiles na Sapucaí. De lá o deslumbre fulgente dos carros alegóricos ígneos de luzes refletoras da soberba das cores espetaculares.
Dentro do viaduto crianças que já brincaram em açudes no interior de Sergipe ou Maranhão, ou na própria Baía de Guanabara, caminham em vai e vem com suas amigas. Famílias de trabalhadores descansam e conversam nas muretas do viaduto. Jovens e corpos favelados que não foram escolhidos para a tipificação do carioca da favelas atravessam afoitamente em ambos os sentidos da via.
São outros corpos, outros trejeitos que não condizem com o estereótipo do “favelado“. Esqueça toda imagem que você tenha sobre a favela. Não tem a ver com regionalização (digo, imigrantes do “norte”, coisas afins).
Paralelos
Enfim, erguem-se monumentos politicamente adversos e paralelos. De um lado, o Viaduto 31 de Março, ícone do gozo autoritário predatório, genocida e racista, que historicamente constituiu a nação brasileira desde o seu 21 de abril de 1500. De outro, um templo dos povos criminalizados, “índios, negros e pobres”.
A Sapucaí engendra, sob a aparente linearidade da evolução do desfile das Escolas de Samba, a cosmologia circular e comunitária inerente dos povos africanos e embebida pelos seus descendentes no complexo e longo processo de negociação da cultura popular em luta de resistência e reconhecimento frente ao Estado e à sociedade.
O samba, do terreiro duramente perseguido, virou “escola” na década de 1930. Logo, “escola de samba” é um exemplo de verbete síntese desta negociação/institucionalização. Em 1934 dá-se a primeira União Geral das Escolas de Samba, enfim, a Era Vargas foi a genitora das sínteses institucionais e culturais mais profundas e permanentes da nossa sociedade.
Crescentemente a esta negociação inicial angariaram-se espaços mais pretos de resistência. A exemplo, o artista e militante Fernando Pampola, do Acadêmicos do Salgueiro, foi protagonista, na década de 1960, em valorizar a história negra nos sambas-enredo no lugar do vigente nacionalismo e da “história oficial”. No lugar de fantasias de barões e duques, que povoavam os desfiles, dá-se lugar a fantasias e temáticas negras e africanas.
Durante a ditadura militar (1964-1985) evoluíram-se resistências. Em 1967, o GRES Acadêmicos do Salgueiro desfilou, tendo o próprio Pampola como carnavalesco, o enredo “História da Liberdade no Brasil” que narrava as revoluções populares no país, em contraponto à suposta “revolução de 1964”.
Mesmo com o Ato Institucional nº 5 em vigor, o GRES Império Serrano, em 1969, saiu na avenida com o “Heróis da Liberdade“, samba de Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira, reconhecido como um dos maiores e melhores samba-enredo da história. Infelizmente, na ocasião, dezenas de membros da Escola foram presos e a letra forçosamente alterada pelos censores da ditadura.
Atualmente, após a redemocratização e tendo como sede a Passarela do Samba, ou Sambódromo como é mais conhecido, lutas continuam sendo travadas buscando o protagonismo político das comunidades frente à escala da vez mais espetaculosa do desfile.
Em 1985, a criação da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) substituiu a antiga Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (AESCRJ), para a gestão própria do “desfile oficial”. Porém, a guinada empresarial da Liesa fortaleceu os interesses de diversos atores econômicos e comerciais que afetaram a performatização do desfile.
A espetacularização televisiva e seus direitos de transmissão ao vivo assim como a crescente privatização de galerias das arquibancadas e o altíssimo valor dos ingressos, azedaram o comparecimento das próprias comunidades ao “maior espetáculo da Terra“. O acesso à chamada “ala das comunidades” nas arquibancadas passaram a seguir protocolos impostos pela Liesa e pelas próprias escolas.
No final do espetáculo, a Avenida Marquês de Sapucaí funciona destila outro funil de acesso, saturados no Viaduto 31 de Março, à espreita da imagem da favela, da própria imagem, do território donde fomos engendrados. Como bom ritual de inversão, estamos lá ocupando o viaduto que homenageia a ditadura militar. Lá estamos nós.
O Viaduto 31 de Março e a Marquês de Sapucaí
Cartograficamente, o Viaduto 31 de Março e a Avenida Sapucaí também situam-se em paralelo. O paralelismo é político também. De um lado, 31 de março é a data do Golpe de Estado ocorrido em 1964 e que destituiu ilegalmente o presidente democraticamente eleito João Goulart. Este levava a cabo reformas estruturais de base, como valorização do salário mínimo, dos sindicatos dos trabalhadores e a reforma agrária.
Assim que destituído João Goulart no dia 31 de março de 1964, foi Leonel de Moura Brizola, à época deputado federal pelo PTB do Rio de Janeiro, quem o acolheu em Porto Alegre (RS) para liderar uma resistência militar ao Golpe, munindo-se de apoio de quartéis no Rio Grande do Sul e outros estados. Fracassada a resistência, Brizola partiu para exílio político, só retornando em 1979, com a promulgação da Lei da Anistia.
Neste interim, em 1977 foi inaugurado o Viaduto 31 de Março, ainda durante o governo do então presidente general Ernesto Geisel, ligando o Túnel Santa Bárbara aos bairro do Santo Cristo e Saúde. Quarto presidente da ditadura militar, Geisel enfrentou a crise internacional do petróleo de 1973, o alto endividamento externo, o início do ciclo inflacionário e o alto desemprego. Sendo visível a falência e o desgaste político do regime ditatorial, dá-se início à “abertura política”, tendo como marco a extinção do Ato Institucional nº5 (AI-5), que em 1968 extinguiu a totalidade dos direitos políticos dos cidadãos e fechou o Congresso Nacional.
Neste processo de distensão política, culmina a Lei da Anistia, em 1979, quando retornam ao Brasil todos os exilados políticos, entre eles Leonel Brizola, que no mesmo ano funda o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em 1982 tem-se as primeiras eleições direta para o estado do Rio de Janeiro, quando candidatam-se e são vitoriosos Leonel de Moura Brizola e o antropólogo e educador Darcy Ribeiro, governador e vice, respectivamente.
Sua gestão foi auto-denominada de “socialismo moreno“, e lembrada por dar valor monumental a dois eixos da política pública: de uma lado, a educação, iconizada pela edificação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), e, de outro, a cultura, representada pela construção do Sambódromo na Avenida Marquês de Sapucaí, entre os bairros do Catumbi e a antiga Praça Onze, berço histórico do samba.
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