O Riso Amargo do Digital: considerações sobre a normalização da violência em tempos de Meme
A era digital, com sua promessa de conexão e informação, trouxe consigo uma nova forma de comunicação: o vídeo curto e viral. Plataformas como TikTok e Instagram se tornaram palcos de um espetáculo que, à primeira vista, pode parecer inofensivo, até mesmo divertido. No entanto, por trás da aparente leveza de vídeos com edições frenéticas e piadas rápidas, esconde-se uma questão perturbadora: a normalização da violência. Esses vídeos, muitas vezes protagonizados por casais, seguem uma fórmula repetitiva: um erro banal cometido pelo homem, seguido de uma punição “cômica” – um tapa, um grito assustador ou até mesmo um objeto arremessado. O resultado? Risos, curtidas e compartilhamentos em abundância. Mas, como sociólogo tenho me perguntado: o que estamos realmente normalizando?
A Superficialidade do humor e a profundidade da violência
A questão central que emerge desses vídeos é a banalização da violência. O que, em essência, é uma agressão, é transformado em uma “brincadeira de casal”. O tapa, o grito e a humilhação pública perdem seu peso de agressão e abuso, tornando-se o “preço” que o homem ou a mulher deve pagar por ser considerado(a) “idiota”. Essa transformação, facilitada pelo véu do humor, é perigosamente eficaz. O riso, que deveria ser um refúgio, torna-se uma ferramenta de disfarce, mascarando a gravidade da violência e impedindo que a sociedade reconheça a seriedade do problema. A naturalização da violência, neste contexto, é um processo sutil e pernicioso, que se instala no imaginário coletivo sem que muitas vezes nos demos conta.
Para deixar claro, normalizar ou naturalizar a violência é, por exemplo, quando começamos a achar que atos violentos são normais, aceitáveis ou até mesmo engraçados. Isso acontece aos poucos, sem que a gente perceba, e pode ter consequências muito ruins. Imagine uma criança que vê a sua mãe sendo espancada frequentemente pelo pai, dentro de casa. Se ela vê isso sempre, ela pode começar a pensar que bater nos outros é uma atitude normal, e não algo errado. É mais ou menos isso que acontece quando a violência é normalizada.
A inversão da cena: revelando a hipocrisia
Uma maneira eficaz de expor a hipocrisia dessa situação é inverter os papéis. Imagine, por um momento, que em vez do marido/namorado, fosse a esposa/namorada sendo punida de forma semelhante por um erro doméstico ou um comportamento considerado inadequado pelo homem. A reação da sociedade seria de indignação imediata, e com razão. A violência contra a mulher é, felizmente, amplamente reconhecida como inaceitável, mas por que a mesma indignação não é expressa quando a violência é direcionada ao homem, ainda que em forma de “brincadeira”? Essa disparidade revela uma visão distorcida da igualdade, que seletivamente sugere a inexistência do sofrimento masculino, sob o pretexto de que é “apenas uma brincadeira”. Aqui reside um grande problema: homens agressores, quando confrontados, quase sempre buscam justificativas lastreadas em argumentos como “não tive a intenção”, “estava irritado”, “fui provocado”, “tudo não passou de um mal-entendido”, “só exagerei um pouco”. Ou seja, tudo não passou de uma “brincadeira de mal gosto”.
A trivialização da violência conjugal e o impacto nas novas gerações
O que esses vídeos ensinam às crianças e adolescentes que os consomem diariamente? Essas gerações estão em um processo de formação de suas ideias sobre o que é aceitável em um relacionamento. Ao ver adultos se punindo de maneira violenta, ainda que sob o pretexto do humor, eles podem concluir que o riso justifica tudo, que a violência é uma forma válida de lidar com frustrações e conflitos. Essa normalização da violência é profundamente preocupante, pois alimenta a ideia de que essas práticas são inofensivas, quando na verdade são reflexo de uma sociedade que convive com a agressividade no ambiente doméstico de maneira banalizada.
O Brasil e a urgência permanente de um debate sobre a violência
O Brasil é um dos países mais violentos do mundo e não pode se dar ao luxo de normalizar qualquer tipo de violência, seja ela física ou emocional, mesmo que disfarçada de humor. Com mais de 40 mil assassinatos por ano, incluindo o alarmante número de feminicídios e homicídios de pessoas LGBTQIA+, a realidade da violência no país é gritante. Segundo o IPEA (2024), entre 2012 e 2022, pelo menos 48.239 mulheres foram assassinadas no Brasil. Conforme o Grupo Gay da Bahia (GGB), aproximadamente uma pessoa LGBTQIA+ é assassinada a cada 34 horas no Brasil, nos colocando entre os países que mais matam LGBTQIA+ no mundo.
Banalizar a violência por meio de memes e vídeos virais é um desserviço à sociedade, que já carrega o peso de um cotidiano violento. A pergunta que devemos nos fazer é: como podemos rir de “brincadeiras” que banalizam a agressão quando o sangue real corre nas ruas?
As Redes Sociais: ferramentas de conexão ou espaços de impunidade?
As redes sociais, que poderiam ser ferramentas poderosas de comunicação, entretenimento e expressão artística, correm o risco de se tornarem terras sem lei, onde a cultura da violência se perpetua sob o manto do humor. Rir de um tapa, de um grito ou de uma humilhação, mesmo que envoltos em filtros e trilhas sonoras engraçadas, é legitimar a agressão. Essa banalização da violência, facilitada pelas redes sociais, é um sintoma de um problema maior: a normalização da violência em todas as suas formas.
O riso: um poder com limites
Se para Platão e Aristóteles o riso carregaria em si um prazer enganoso, o que implicaria em cautela e moderação, Epicuro e Sêneca defenderam o riso como essencial à experiencia humana. Assim, poderia pensar que o riso, que tem o poder de curar e unir, também tem seus limites. É hora de refletir acerca do que estamos rindo e sobre as mensagens que estamos transmitindo, especialmente para as novas gerações. O humor nunca é neutro; ele reflete e reproduz valores e crenças da sociedade. Se rimos da violência, mesmo que de forma irônica, não estaríamos contribuindo para a sua normalização, tornando-a mais aceitável e palatável e, por consequência, mais difícil de erradicar?
A promoção do humor, da brincadeira, do riso e da ironia deve ser defendida como forma essencial de expressão humana, sem censura. O humor tem um papel crucial na sociedade, oferecendo alívio em tempos difíceis, facilitando a comunicação e promovendo conexões entre as pessoas. Quando usadas de maneira inteligente e respeitosa, a brincadeira e a ironia desafiam normas sociais, revelam verdades e incitam reflexões. Ao incentivar o riso, cultivamos uma sociedade mais resiliente e capaz de lidar com adversidades.
O humor também pode chamar a atenção para questões importantes, oferecendo novas perspectivas e promovendo mudanças de maneira acessível. No entanto, é necessário distinguir entre defender o humor e criticar a banalização da violência nas redes sociais. Denunciar vídeos que tornam a violência uma piada não é defender censura, mas destacar a necessidade de um humor que não reforce comportamentos prejudiciais, como os que banalizam a violência nas relações afetivas e familiares, transformando agressões emocionais, físicas e psicológicas em “brincadeiras”. Esses conteúdos trivializam a violência e normalizam a ideia de que relações abusivas são aceitáveis ou até engraçadas.
Devemos promover um humor que edifique, respeite e não disfarce atos de violência como brincadeiras. O riso deve ser uma ferramenta de união e cura, não de agressão ou perpetuação de estereótipos prejudiciais. Fomentando um humor consciente, podemos criar um ambiente mais saudável e seguro, onde a liberdade de expressão é preservada sem sacrificar a dignidade e o bem-estar alheio.
A violência não tem gênero: uma luta que deve ser de todos
A violência não tem gênero; tanto homens quanto mulheres são vítimas. No entanto, é inaceitável ignorar que a violência possui uma territorialidade bem definida; existe a violência do mundo das ruas e a violência do mundo do lar. Enquanto a grande maioria dos homicídios de homens ocorre nas ruas, um território historicamente hostil, os homicídios contra as mulheres ocorrem majoritariamente no lar, espaço que deveria ser de afeto, aconchego e segurança. No entanto, a realidade tem sido trágica e a luta contra ela é essencial.
Abrir o debate para todos os tipos de violência é crucial para desmistificar estereótipos e promover um entendimento mais profundo sobre a dinâmica da violência nas relações pessoais, especialmente no âmbito doméstico. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023), 70% dos feminicídios identificados pelas polícias civis foram cometidos dentro de casa.
A Responsabilidade de cada um na construção de uma sociedade mais justa
Não podemos mais normalizar a violência – nem em palavras, nem em ações, nem em piadas. O Brasil já carrega o peso de uma realidade violenta demais para que a alimentemos ainda mais. As redes sociais precisam ser usadas para informar, conscientizar e unir, e não como veículos que perpetuam ou banalizam comportamentos que ferem vidas reais. A mudança começa no diálogo, na educação e na escolha de não rir do que desumaniza. O riso pode ser leve, mas suas consequências podem pesar. É momento de analisarmos cuidadosamente o conteúdo de nossas risadas e as mensagens que estamos comunicando.
A discussão sobre a normalização da violência nos vídeos virais é apenas a ponta do iceberg de um problema mais profundo e complexo. A violência está presente em diversas esferas da sociedade e não pode ser ignorada ou trivializada. É preciso que cada um de nós assuma a responsabilidade de questionar comportamentos e narrativas que normalizam a violência, para que possamos construir uma sociedade mais justa e igualitária. A luta contra a violência é uma luta de todos, que exige esforço coletivo, diálogo aberto e a busca por soluções eficazes.