Os Jogos Olímpicos de 2016, que ainda nem começaram, já estão deixando seus legados pela cidade. Não necessariamente positivos. As obras viárias previstas (algumas em andamento), a princípio importantes para a mobilidade urbana, têm provocado o deslocamento maciço de inúmeras comunidades, que se encontram no traçado original dos projetos. É importante mencionar que estes nunca foram discutidos com os moradores destas localidades. É o caso do corredor Transoeste, que ligará a Barra da Tijuca a Santa Cruz. Atualmente, três comunidades do Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste do Rio de Janeiro, têm sofrido as consequências perversas desta obra: Restinga, Vila Harmonia e Vila Recreio II. Uma quarta praticamente deixou de existir recentemente: a comunidade Notre Dame.
Não apenas não se discutem alterações no traçado do projeto, como a alternativa habitacional quase sempre não é digna do nome: a única “alternativa” é a “escolha” de um apartamento construído pela prefeitura, com recursos federais do programa Minha Casa, Minha Vida, nos bairros de Cosmos e Campo Grande. Todo o processo de remoção das comunidade se inicia com um rápido e eficiente processo de convencimento de parte dos moradores de uma dada localidade. Entretanto, neste caso, convencimento vem quase sempre atrelado de coação e ameaças, tornando-se quase sinônimos. Frequentemente, são funcionários da subprefeitura local que realizam este processo. Importante lembrar que o atual prefeito deu autonomia operacional a estas administrações regionais para que fizessem parte das ações do programa de remoções municipal em curso. Em alguns casos, as equipes das subprefeitura ficam responsáveis por todo o processo: do convencimento à demolição. Foi isto o que ocorreu na Vila Recreio II ao longo dos últimos meses, uma localidade que fica próxima a Avenida das Américas, alvo da obra de duplicação no projeto Transoeste. Funcionários da subprefeitura da Barra foram à comunidade diversas vezes e, alegando uma suposta prática democrática, foram convencendo, através de coação, muitos moradores a aceitarem a “alternativa”. Em alguns casos, indenizações de valores irrisórios também foram ofertadas. Há algumas semanas a retirada das pessoas e as demolições das casas começaram. Na última sexta-feira, dia 10 de dezembro (aliás, Dia Internacional dos Direitos Humanos) ocorreu mais um capítulo dessa trágica novela.
A aceleração da derrubada das casas se iniciou durante a última semana. Funcionários da prefeitura retornaram à comunidade para pressionarem os moradores. Estes funcionários teriam dito a eles que fossem imediatamente à Secretaria de Habitação (SMH) para pegarem “o cheque”, pois a intenção da prefeitura era derrubar todas as casas até sexta-feira. Muitos moradores, com medo de perder os seus pertences, sairam da comunidade diante da ameaça de que não haveria tempo para retirarem os seus bens. Estes mesmos funcionários ainda questionariam alguns moradores sobre uma ação judicial existente que reivindica uma indenização mais justa. Estes moradores, diante de tais questionamentos, afirmaram que estavam preocupados em sofrer alguma represália pelo fato de terem ajuizado a ação.
Após estas intimidações, os agentes do poder público passaram, então, a marcar as casas que ainda não possuiam a inscrição da SMH. Isto deixou os moradores consternados e preocupados, posto que o trecho da comunidade exigido para a realização das obras já havia sido marcado e aquela ação não fazia sentido. Os funcionários da prefeitura que lá estiveram foram questionados sobre tal atitude, mas disseram não saber o motivo da marcação. Entretanto, estes mesmos agentes apontaram que desta vez não haveria tempo para que uma equipe de assistentes sociais fosse à comunidade fazer o cadastramento.
No dia 10, uma equipe da subprefeitura, composta pelos responsáveis pela negociação e demolição, realizou a maior derrubada de casas até então. Um fato interessante, entre os escombros e a poeira, chamou a atenção dos presentes: tanto a retroescavadeira, quando o capacete de alguns operários e do chefe de obras tinham a inscrição “Odebrecth”. Embora o chefe de obras tenha retirado o adesivo que indicava o nome da referida empresa, ficou claro que os operários (que estavam com o uniforme com a logomarca da secretaria de obras da prefeitura carioca) e a retroescavadeira utilizada estavam sob responsabilidade da empresa que comanda toda a obra da Transoeste: a construtora Odebrecth.
Importante destacar que todo o procedimento de demolição não respeita nenhuma norma de segurança, isto é, não garante a proteção nem dos moradores que se encontram no local, nem dos próprios operários responsáveis pela derrubada das casas. Além disso, ao deixar o rastro de destruição, deixa também fios elétricos expostos, vidros de janelas espalhados, vergalhões a mostra, além de deixar a comunidade exposta a proliferação de doenças transmitidas por animais como o rato.
Chama a atenção a forma truculenta e violenta com a qual os funcionários, especialmente da subprefeitura, tratam os moradores, principalmente aqueles que mais resistem à política de remoções da prefeitura. Violência aqui assume diversas formas: desde a simbólica e o poder público, através da forma como essas populações são definidas pelo imaginário coletivo e o poder público, passando pela violência psicológica, visto que são submetidas a pressões quase diárias, até a violência física propriamente dita. Este é o modo típico de atuação do poder público em relação às camadas populares.
Eis, então, o que aconteceu: durante a demolição de casas já negociadas, um funcionário da subprefeitura, de nome Alex, queria derrubar de qualquer maneira uma construção que fica às margens da Avenida das Américas. Disse que ali havia poucas coisas e que se poderia retirá-las e jogá-las (sic) em qualquer lugar. Tentou arrombá-la, mas não conseguiu. O morador dono daquela moradia estava ali próximo e foi chamado às pressas por outras pessoas que observavam a ação do agente público. Ele foi, então, conversar com o Alex e explicar o que havia dentro de sua casa. Enquanto isso, algumas pessoas, entre elas Tiago, morador da comunidade Vila Harmonia (que estavam ali para prestar solidariedade aos moradores da Vila Recreio II), estavam registrando o que ocorria na localidade e decidiram filmar a conversa entre o Alex e o referido morador.
Após alguns instantes, Alex se irritou e agrediu Tiago, segurando-o pelo colarinho da camisa e o empurrando, chegando até a levantar uma das mãos como se fosse desferir um soco no jovem. Neste instante, sua mãe, que estava próximo, moradores da própria Vila Recreio II e outras pessoas foram ajudá-lo, tentaram tirá-lo das mãos de Alex. Reclamariam ainda da atitude de Alex, apontando-lhe que não poderia fazer aquilo. Cercado de guardas municipais, que ameaçaram usar os cacetetes e a arma de choque (mesmo a agressão tendo partido do agente da subprefeitura), Alex afirmou que tinha direito sobre sua imagem e que não podia ser gravado, pois existiria uma lei que lhe garantia isso sem, contudo, mencionar qual seria esta. Alegando que estava sendo agredido, ameaçou dar voz de prisão, mas, diante da resistência das pessoas ali presentes contra arbitrariedade, questionando sua suposta autoridade policial, recuou. Alex apontou que não entendia por que Tiago e outras pessoas da Vila Harmonia estavam ali, já que “a questão deles é outra e que, por isso, não tem que se meter”. Três coisas podem ser ditas sobre isso: em primeiro lugar, Alex tentou abusar de sua autoridade de funcionário público, status que, inclusive, não está muito claro, pois ele costuma circular nas comunidades sem identificação. Em segundo, por se tratar de uma atividade pública, o registro se faz mais do que necessário. Afinal de contas, uma das caraterísticas do serviço público é (e tem que ser) a publicidade. Caso contrário, configura uma ação ilegal. Em terceiro lugar, faltou ao referido agente público a compreensão de que há solidariedade entre os moradores de diversas comunidades ameaçadas de remoção pela prefeitura e que a resistência a opressão é legítima.
Após Tiago e os demais moradores da Vila Harmonia terem ido à delegacia prestar queixa, Alex continuou na Vila Recreio II, desta vez, tentando convencer os moradores de que fora agredido primeiro e de que os que supostamente o haviam feito eram baderneiros. Posteriormente, após saber que denúncias contra ele e a ação da subprefeitura estavam sendo feitas na Defensoria Pública, Ministério Público e Comissão de Direitos Humanos da Alerj, mudaria a versão contada às pessoas na comunidade. Afirmou que entendia a situação dos moradores e que “se pudesse ajudar, até ajudaria”. Apontou que quem ordena as demolições é o subprefeito da Barra da Tijuca e Jacarepaguá, Tiago Mohamed Monteiro. Obviamente tentando se desvencilhar das críticas direcionadas a ele, disse que o subprefeito quer que se derrubem as casas de qualquer maneira. Ainda na estratégia de tentar ganhar a confiança dos presentes e afastar a imagem de truculento que possui (confirmada pelas suas ações), sugeriu que os moradores se organizem e chamem a imprensa, pois a prefeitura teria medo desta. Entretanto, apesar de jogar a responsabilidade para o subprefeito (que, segundo Alex, é aplaudido pelo prefeito mesmo sem este saber o que está acontecendo), não conseguiu convencer aqueles moradores que querem continuar e que não aceitam a forma truculenta como costuma agir.
Para completar a acumulação de violações de direitos destas populações, o jovem Tiago e os demais moradores da Vila Harmonia não puderam fazer queixa na 42a delegacia. Nesta, foram informados de que o depoimento e o registro de ocorrência não seriam feitos, pois “não daria em nada, nenhum juiz vai querer saber”. Contudo, a denúncia foi feita na Ouvidoria do Ministério Público.
Fonte: Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência