Sozinha, agredida, amordaçada. O sonho do primeiro filho quase se tornou um pesadelo para Ana Paula Abreu, 26, jovem moradora de Rio das Pedras. Em 2014, ela foi humilhada, negligenciada e chegou a apanhar do profissional que deveria acolhê-la no momento mais de importante de sua vida. Infelizmente, sua história não é única: um quarto das mães brasileiras já passaram pela experiência da violência obstétrica em consultórios e salas de parto do país.
Xingar, constranger, negligenciar, agredir e realizar procedimentos contraindicados, como lavagem intestinal, cortes vaginais e até sentar sobre a barriga da gestante, são algumas das inúmeras formas com que se caracteriza a violência obstétrica. Muitas dessas atitudes são usuais, o que faz com que grande parte da população ignore o problema: “Há dificuldade para identificar, o que dificulta a busca por apoio. O tema ainda é bem pouco discutido entre os profissionais e nem todos são sensibilizados para perceber”, afirma a psicóloga e membro fundadora do Coletivo Elas da Corrente Danieli Santos, que promove ações culturais pelo protagonismo de mulheres e LGBTQIs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) na comunidade da Zona Oeste do Rio.
O caso de Ana Paula foi bastante emblemático e ganhou repercussão. Ela foi uma das muitas vítimas do médico obstetra Ricardo Rodrigues de Sousa. Conhecido pelo apelido de Cachorrão entre as pacientes, ele foi acusado de agredir, pelo menos, sete gestantes que deram à luz no Hospital Miguel Couto, na Gávea – unidade de saúde de referência para as gestantes de Rio das Pedras. Uma sindicância foi aberta e ele acabou afastado do hospital.
Em setembro de 2014, Ana Paula Abreu chegou ao Miguel Couto em trabalho de parto e tremeu ao saber que seria atendida pelo profissional, a respeito de quem já tinha ouvido péssimos relatos. A jovem mãe acusa o médico de se recusar a atendê-la com a agilidade necessária, deixando-a esperando por horas, com fortes dores. O obstetra também a tratou de maneira ríspida e não permitiu que o marido a acompanhasse. Na sala de parto, os maus tratos chegaram a agressões físicas. “Ele dava tapas no meu rosto. Falava que eu não prestava para ser mãe”, conta.
Os quatro dias de terror que passou na unidade deixaram marcas profundas. Mãe do pequeno J., de 2 anos e sete meses, Ana Paula faz acompanhamento psicológico desde então e afirma que demorou muito tempo para conseguir lidar com o problema: “Por conta do trauma, não pude amamentar. Meu leite não saía. Chorei por 30 dias seguidos. Não conseguia falar sobre isso. Nunca mais quero ter filhos”. Infelizmente, casos como esse são comuns a toda a rede hospitalar pública e privada. “É um problema generalizado. Nada justifica a violência obstétrica, que acontece em um momento muito sensível da mulher”, opina a enfermeira Ana Carolina Sousa, ex-diretora de Ações de Programas da Secretaria Municipal de Saúde do Rio responsável por levar à frente a denúncia do caso.
A mobilização das mulheres e de grupos feministas contra a violência obstétrica forçou o Ministério da Saúde a lançar em março deste ano a Diretriz do Parto Normal. O documento traz uma série de orientações para a realização de nascimentos no país, como incentivar técnicas de alívio da dor e evitar cesarianas e outras manobras agressivas desnecessárias. Apesar dos avanços, ainda não há mecanismos legais para punições aos agressores. As denúncias podem ser registradas no Disque Violência contra a Mulher e no Ministério Público.
– Só quem passa por isso, sabe. É muito difícil relembrar tudo. O que a gente mais deseja é ir para casa e cuidar do nosso filho. A todas que tiverem mais coragem e determinação do que eu, peço que denunciem. Vale muito a pena – incentiva Ana Paula Abreu.
‘Fiquei lá quatro dias, olhando para a cara daquele monstro’
Ana Paula Abreu, 26 anos, vítima de violência obstétrica durante o parto do filho de 2 anos e 7 meses
“Ele não olhou para mim, apenas falou que eu devia me calar, senão iria me deixar sozinha até eu parar de chorar. Não permitiram a entrada do meu esposo na sala de parto. Ele dava tapas no meu rosto, falando que eu não prestava para ser mãe. Colocou muitas gazes dentro da minha boca, me deixando sufocada. Subiu em cima da minha barriga. Dizia coisas horríveis. Meu filho nasceu no meio de tudo isso, e já tinha passado do tempo. Teve que ir para a UTI. As duas enfermeiras que estavam com ele viam tudo e não falavam nada. Não tive coragem de contar para ninguém de imediato, só depois de um tempo contei ao meu esposo. Ele e meus irmãos falaram com a direção do hospital, mas ninguém fez nada. Apenas lamentaram e disseram que ouviam relatos semelhantes. Eu tive que ficar lá por quatro dias, olhando para a cara daquele monstro.”
O que uma equipe médica não pode fazer antes, durante ou depois de um parto
– Recusa de atendimento;
– Privação de acompanhante;
– Procedimentos desnecessários, como lavagem intestinal e raspagem de pelos;
– Jejum forçado;
– Agressões físicas e verbais;
– Constranger a paciente com comentários preconceituosos (especialmente em casos de aborto);
– Exposição vexatória do corpo da paciente;
– Cesárea forçada e/ou sem recomendação;
– Deixar ou se negar a oferecer algum alívio para a dor;
– Realizar procedimentos médicos sem autorização;
– Realizar episiotomia (corte entre a vagina e o ânus que facilita a saída do bebê, mas que é extremamente doloroso);
– Realizar manobra de Kristeller (quando o profissional de saúde apoia todo o peso de seu corpo sobre a barriga da gestante);
– Separar mãe e bebê saudável após o nascimento.
Publicado na edição de maio de 2017 do Jornal A Voz da Favela.