“A experiência de todos os movimentos de libertação atesta que o êxito de uma revolução depende do grau em que dela participam as mulheres”. Lenin
Em 1925, na União Soviética, uma mulher que percorresse as ruas não acharia estranho deparar-se com um cartaz que apresentasse uma imagem centralizada de uma mulher vestida de vermelho, apontando para o que seria a sede de uma instituição. Nesse cartaz, grandes letras em russo exibiam a seguinte frase: “Toda cozinheira deveria aprender a governar o Estado”.
Embora erroneamente atribuída a Lenin, essa declaração é, na verdade, uma paráfrase de um trecho do próprio líder soviético contido no texto “Os bolcheviques manterão o poder estatal?”, publicado em outubro de 1917, algumas semanas antes da Revolução. Essa representação simboliza um marco significativo na história, indicando que o lugar da mulher era na vida política, que ia além dos limites do ambiente doméstico. Resumindo, Lenin reconhecia a importância de garantir que as mulheres tivessem plena participação na sociedade e na política, sendo parte integral na construção de uma sociedade socialista.
Após mais de 100 anos, uma triste realidade persiste: a violência política é uma sombra constante no ambiente político. As mulheres, especialmente aquelas de esquerda, continuam a ser alvo dessa violência. Desde ameaças verbais até ataques físicos e, em casos extremos, assassinatos, esses atos violentos não apenas representam uma ameaça à integridade física e psicológica das mulheres na política, mas também têm o propósito nefasto de intimidar e silenciar vozes que buscam impulsionar mudanças sociais significativas.
A política, historicamente, tem sido dominada por homens. A mulher era para estar no recato da sua casa a criar os filhos e a cuidar da casa. Em Portugal, por exemplo, a política salazarista reforçou este papel: o social para o homem e a casa para a mulher. E, se o ambiente político é hostil e excludente para todas as mulheres, o é especialmente para aquelas com ideias progressistas, aquelas que vêm pôr em causa o sistema patriarcal, aquelas que querem, exigem, ser vistas de igual forma, com os mesmos direitos, com os mesmos deveres.
No Brasil, há algumas semanas vimos, os ataques de hackers feitos à primeira-dama Janja ressoam com os comentários de que ela “não deveria se meter com política”. A deputada Samia Bonfim e a ativista Marielle Franco representam exemplos contundentes da violência política que mulheres de esquerda podem enfrentar. Bonfim, após denunciar ameaças em decorrencia da sua atuação política, vivenciou a terrível tragédia do assassinato de seu irmão, ilustrando de forma trágica como a violência pode atingir não apenas as próprias mulheres, mas também suas famílias. Marielle Franco, por sua vez, foi uma defensora incansável dos direitos humanos e uma crítica contundente das práticas policiais violentas. Sua vida foi brutalmente interrompida em um ato de violência política que chocou o mundo, demonstra os riscos reais que mulheres de esquerda enfrentam ao lutar por justiça e igualdade.
Além desses casos, há outros exemplos notáveis de violência política direcionada a mulheres de esquerda em várias partes do mundo. Na Índia, a ativista e política Meira Kumar enfrentou ataques e ameaças por sua luta em prol dos direitos das mulheres e das minorias. Na América Latina, lideranças como Berta Cáceres, do movimento indígena hondurenho, e Dilma Rousseff, ex-presidente do Brasil, foram alvos de ataques e ameaças devido a suas posições políticas progressistas.
Rosa Luxemburgo, uma das fundadoras do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) e líder da Revolução Espartaquista em 1919, foi brutalmente assassinada. Clara Zetkin foi perseguida devido às suas atividades políticas e suas obras foram banidas. Dolores Ibárruri, “La Pasionaria”, após a vitória de Francisco Franco, foi exilada e sua imagem foi difamada pelo regime franquista.
Os desafios públicos de mulheres de esquerda:
O sexismo persiste como um problema enraizado em diversas esferas da sociedade, e a política não é exceção. Mulheres que ocupam cargos políticos, sobretudo as que advogam por posições de esquerda, frequentemente se deparam com comentários e comportamentos misóginos. Enfrentam a discriminação de gênero, que se manifesta na subestimação de suas capacidades e na imposição de estereótipos prejudiciais, mesmo dentro de ambientes de esquerda.
Para as mulheres com perspectivas progressistas, a desigualdade é ainda mais acentuada, pois essas mulheres frequentemente desafiam as normas estabelecidas e buscam promover mudanças significativas na sociedade. Esse tipo de abordagem encontra resistência de grupos e indivíduos que desejam manter o “status quo”.
A sub-representação das mulheres na política é um fenômeno global que reflete estruturas sociais historicamente patriarcais que, infelizmente, também não são impermeáveis à esquerda. Inessa Armand, parceira de Lenin, teria expressado em determinado momento que, apesar do discurso favorável à participação política das mulheres, a prática efetiva distanciava-se consideravelmente da teoria proclamada. Esse afastamento era atribuído às estruturas que perpetuavam estereótipos de gênero e normas culturais, restringindo o acesso e a participação das mulheres nas decisões políticas. No entanto, é inegável que durante o período da União Soviética, foram alcançados avanços significativos para as mulheres, como igualdade educacional, participação ativa no mercado de trabalho e direitos reprodutivos.
A democracia não é uma conquista definitiva. Não se trata de um “jogo já ganho”, mas de algo que demanda e continuará a exigir esforço diário. O que desconhecíamos era que, tão prematuramente, o ressurgimento do fascismo ocorreria, manifestando-se nas redes sociais, na televisão e em todos os lugares, ameaçando, perpetrando violência e causando desestabilização. Neste contexto, a difamação e propagação de desinformação são comumente utilizadas por esses grupos para minar a credibilidade e influência das mulheres de esquerda. Adicionalmente, movimentos conservadores frequentemente expressam desacordo e se mobilizam contra políticas propostas por essas mulheres, evidenciando a resistência firme que enfrentam. Esse cenário desafia a integridade democrática, demandando uma resposta coesa.
À medida que a presença online se torna cada vez mais relevante na política, as mulheres estão sujeitas a uma elevada incidência de assédio virtual e ameaças nas redes sociais. Essa forma de violência política tem um impacto profundamente significativo na capacidade das mulheres de se envolverem plenamente no processo político. O discurso de ódio, tal como o nome indica, não está assente na realidade. Observa-se o reaparecimento de discursos populistas, xenófobos, homofóbicos e racistas que levam à intolerância face às minorias. O assédio cibernético não apenas cria um ambiente tóxico e intimidador, mas também têm efeitos duradouros na saúde mental e no bem-estar das mulheres políticas.
Se há parte da população que alinha no discurso progressista e pró direitos humanos, ainda existem aqueles que querem a mulher remetida para o papel secundário a que foi colocada nestes anos todos. O antifeminismo é um retrocesso no progressismo que se quer na sociedade, a expressão clara do conservadorismo que ainda grassa na nossa sociedade, e que ataca qualquer coisa que fuja ao “status quo” e daqueles que, por ignorância ou por maldade, querem que à mulher ainda seja atribuído o papel de outrora, ser um enfeite, ser dona de casa, cuidar dos filhos, o papel de cuidado.
E os desafios privados?
A “tripla jornada” e a carga de trabalho adicional representam desafios significativos para muitas mulheres de esquerda, especialmente aquelas que estão envolvidas na política.
No feminismo marxista, a “tripla jornada” diz respeito à complexa tarefa enfrentada por essas mulheres de conciliar três esferas de responsabilidade: o compromisso com a comunidade e a militância, muitas vezes sem remuneração; o trabalho remunerado, essencial para a subsistência; e o trabalho doméstico, o trabalho reprodutivo, que inclui uma variedade de atividades necessárias para o funcionamento da casa e o bem-estar da família. Ou seja, dos indivíduos que são ou serão os trabalhadores de amanhã, como nos lembra Lise Vogel.
Essa realidade impõe uma carga adicional de responsabilidades, que pode se tornar um obstáculo para a plena participação na arena política. Mesmo quando essas mulheres conseguem ser eleitas, continuam a enfrentar o desafio de equilibrar essas três esferas de compromisso, o que pode ser exaustivo e demandar uma gestão cuidadosa do tempo e dos recursos.
Engajar-se na militância muitas vezes envolve paixão e dedicação às comunidades e às causas defendidas. Contudo, frequentemente, essa dedicação não é remunerada, o que implica que essas mulheres investem tempo e energia sem uma contrapartida financeira direta. Adicionalmente, o trabalho remunerado é essencial para a subsistência e segurança financeira, tornando desafiador para as mulheres de esquerda conciliarem suas responsabilidades políticas com empregos remunerados, demandando uma gestão cuidadosa de tempo e energia.
Diante dessas demandas, é crucial reconhecer o papel significativo e sobrecarregado que as mulheres de esquerda desempenham em suas comunidades. A violência política contra as mulheres cria um ambiente de medo e insegurança, dificultando a participação ativa e plena desses sujeitos no processo político. O impacto vai além das vítimas diretas, minando a confiança na democracia e enfraquecendo o tecido social. É um obstáculo significativo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, onde todas as vozes, independentemente do gênero, devem ser ouvidas e respeitadas. Queremos este espaço público como um dia nos propôs Lenin. Estamos preparadas.
Inês Moreira dos Santos é psicóloga e ativista feminista a tempo integral.
Marcela Magalhães de Paula é colunista da Agência de Notícias da Favela.