Tudo agora se divide em antes e depois da pandemia. Eu, por exemplo, nunca fui fã de bacalhau, achava um peixe salgado demais, seco e sem graça. Curtia os acompanhamentos, as batatas, cebolas, os pimentões e alhos…e o azeite, claro! Ah, o azeite, doce e suave contraste com aquele bicho esquisito. Nem de bolinho de bacalhau eu gostava, sobretudo depois que vi aquela peça inteira pendurada no armazém, uma sardinha gigante aberta em par. Como um peixe daquele tamanho podia virar um bolinho tão pequeno? Para mim, bolinho de bacalhau era feito com batata amassada em água salgada, misturada com umas ervas de cozinha e frita em óleo de soja.
Hoje, no meio da pandemia e do isolamento que ela impõe, não só aprecio lombo de bacalhau como sei fazer a receita ao forno aprovada até pela minha mulher, que em questões culinárias é muito exigente. Compramos umas peças de bacalhau no mercado, coisa pouca, para almoçar no meu aniversário. Dessalguei os lombos, temperei com alho, derramei um copo de leite e deixei descansar por uma hora, ou pouco mais. Dispus no refratário, acrescentei um copo de vinho branco e reguei com um fio apenas de azeite. Ajeitei umas batatas cortadas ao redor, azeitonas pretas, tempero da Casa Pedro e meti no forno já bem quente. Menos de uma hora depois estava na mesa. Ficou excelente, digno dos meus setenta anos.
Outra coisa são as séries da Netflix – sempre tive preguiça e má vontade, principalmente com as espanholas que se arrastam por intermináveis episódios e temporadas. Não conseguia guardar na memória os personagens com suas subtramas, as intrigas e os mistérios baratos…uma chatice. Hoje, ao contrário, sou o primeiro a assistir, voraz, episódios a fio, como se o mundo fosse acabar amanhã. Pensando melhor, talvez vá mesmo, esta praga bíblica que se abateu sobre o planeta é o último aviso, a derradeira trombeta do apocalipse, a revelação escatológica final…quem saberá?
Pelo sim, pelo não, assisto a quantos capítulos os espanhóis fizeram; quer dizer, durmo a maior parte da trama, daí vem minha ignorância sobre quem são Merced, Juan, Ángel e o Señor Porras. Que importa? A coisa se desenvolve com tal lentidão que quando desperto com uma freada brusca ou um tiro me parece não ter perdido nem um lance. Hoje sou fã das séries, não importa se são dramas, suspenses, comédias, aventuras ou documentários. Graças à pandemia e ao isolamento social.
Conversa longa ao telefone era outro problema sério para mim. Antes da pandemia, abreviava o máximo qualquer papo, às vezes com amigos de muito tempo que telefonavam para saber se estava bem, o que tinha feito da vida, como via a situação política nacional e internacional, se me lembrava do Abreu e se sabia que tinha morrido de câncer na próstata ou na alma. Eu, do lado de cá da chamada apenas balbuciava, qual um espartano da Lacônia, “É”, “Sei”, “Morreu?!”, “Que coisa!”, “Não diga” Perguntas meramente retóricas mereciam resposta rápida: “Tudo bem”, “tá certo”, “Ligo sim”.
Hoje, cada ligação que atendo é uma sessão de psicanálise, mergulhamos fundo, meu interlocutor e eu, na alma do outro e percorremos juntos labirintos de frustrações, traumas, realizações, decepções amorosas, saudades. Ninguém tem compromisso agendado nem está atrasado para coisa alguma. Falamos de colegas, namoradas, namoradas de colegas, casamentos e divórcios, “Você nunca mais viu a Marlene?”, “Que fim levou o Horácio, lembra dele?”, “Você ainda tem problema com o tamanho do pau?”, “Quantos filhos você tem mesmo?”, “E o seu tio Félix, ein? Figuraça, né, rapaz? Morreu de câncer…Ah, não, era oncologista, morreu de infarte fulminante, confundi”. “Outro dia encontrei o Zé Carlos, aquele do cabelão de John Lennon, lembra? Tá completamente careca, nem um fio pra contar a história. Reconheci pela voz fanha, acredita?” Telefonemas do passado são o máximo na quarentena na era do 5G, do fim da privacidade, da burrice natural e da inteligência artificial.
Quando a pandemia melhorar e o isolamento terminar tudo será diferente, preveem estudiosos do comportamento. Dizem que o self-service não volta porque ninguém vai comer da comida exposta sem proteção senão a da luz forte sobre ela. Uma vez vi um aviso no restaurante onde almoçamos: “Não fale sobre os alimentos”. Achei graça e comentei com a minha mulher, na fila à minha frente: “Essa salada parece meio passada”. E ela: “E o brochete de frango é de ontem”. “E esse aipim frito de anteontem”, disse, e caímos na risada. Comida sensível.
Outro cronista vaticinou o fim dos cinemas, e acho que está certo. Nunca mais filas para comprar ingresso, salas abarrotadas, adeus pipoca gordurosa, combos e tombos no escuro, como demos adeus aos lanterninhas décadas atrás. Tudo que é sólido se desmancha no ar, nenhuma aventura valerá a pena se a alma for pequena. A era do medo bate à porta. Medo de se infectar por vírus ou por ideias, medo de abraçar o outro, de ter empatia, de comprar flores na floricultura, remendar sapato no sapateiro , comer cachorro quente na carrocinha. Medo de abrir os braços à vida, encher os pulmões como na radiografia de tórax e proclamar “Estamos vivos! Viva a vida!”