Ao longo da História, esconder o significado de conceitos foi uma tática amplamente utilizada para acusar os grupos discriminados de promover a discriminação. No Brasil, nos últimos anos, alguns racistas têm insistido na ladainha de que políticas de reparação histórica, como a reserva de vagas em concursos empregatícios e vestibulares, seriam “racismo reverso”. A maioria dos que assim classificam as políticas de ação afirmativa sequer percebem que, ao afirmar tal coisa, evidenciam a própria falta de conhecimento sobre o tema que pretendem abordar. Pois bem:
racismo
substantivo masculino
1.
conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças, entre as etnias.
2.
doutrina ou sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior) de dominar outras.
3.
preconceito extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente, ger. considerada inferior.
4.
POR ANALOGIA
atitude de hostilidade em relação a determinada categoria de pessoas.
“r. xenófobo”
Esses são os significados da palavra racismo, segundo o dicionário mais consultado no mundo hoje (o do Google). Por isso afirmo: O discurso de racismo reverso é diploma de ignorância.
Políticas de ação afirmativa existem porque o Estado reconhece, por meio dos dados oficiais e de pesquisas, que uma parcela da população – pertencente a um determinado segmento – está prejudicada na forma como se desenvolvem as políticas públicas em geral. Isso faz com que, mesmo a lei sendo igual para todos/as, essas pessoas se encontrem em situação de menor acesso a direitos em relação às outras. Cota não é esmola, não é favor, não é vantagem.
As relações econômicas, políticas e sociais que temos hoje são fruto de um processo de abolição que não buscou incluir a população afrodescendente na dinâmica nacional em pé de igualdade. Não houve política de inclusão no sistema educacional, não houve reforma urbana nem política de moradia, não houve reforma agrária, não houve política de saúde específica, não houve sequer política de censo para a garantia do acesso à documentação. Não há como dizer que a situação demonstrada pelos dados estatísticos de hoje são fruto da incompetência intelectual ou laboral da parcela da população que descende das massas escravizadas trazidas do continente africano.
Somos a parcela da população que mora nos bairros onde a situação de moradia e saneamento é a mais preocupante; a parcela que depende mais da parte pública do Sistema Único de Saúde; a parcela que passa menos tempo nas instituições de ensino (muitas vezes por ter a obrigação de gerar renda em subempregos para ajudar a sustentar a família); a parcela que tem os menores salários e as maiores jornadas de trabalho.
E não venham afirmar que estamos de “mimimi”. Se hoje temos a liberdade é porque lutamos ao lado ou não de pessoas não negras conscientes da tirania e dos maus tratos sofridos pela população negra nesse país: Zumbi, Dandara, André Rebouças, Teresa de Benguela, José do Patrocínio, Luis Gama e tantos e tantas que deram a vida pela liberdade vivem em nós.
Continuamos essa luta diuturnamente porque a sociedade ainda é racista e o Estado ainda nos mata. Seja através de um polícia militarizada, mal preparada e eivada de preconceitos (vide o perfil atribuído aos elementos suspeitos das narrativas policiais), seja pela construção de políticas públicas que não levam em consideração as especificidades biológicas e culturais do povo brasileiro – que é, repitamos, em sua maioria formado por pessoas negras.
Num momento político em que temos um presidente de intelecto limitado e postura mesquinha, que nos mede em arrobas como gado, que direta ou indiretamente autoriza atitudes como a de um parlamentar que destrói obras de arte em alusão ao Dia da Consciência Negra, só nos resta reafirmar: vidas negras importam e lutaremos por elas, custe o que custar!